José Nêumanne
Artistas que contestam biografias não querem garantir privacidade ou honra, mas dinheiro
Aceita-se até com naturalidade que um idoso, acostumado há 14 anos a ter acesso prioritário a filas de bancos, poltronas de avião e outras vantagens dadas pela lei à longevidade, receba como corriqueira a condição, negada pela gramática, pela História e pela biologia, de reinar sobre a juventude. A Jovem Guarda, denominação de cunho bolchevique para um programa de iê-iê-iê (anglicismo desconhecido pelos menores de 40 anos de hoje) de guitarristas cabeludos, iniciada há meio século, está desmobilizada há 47 anos. Desde então, sua majestade trocou a rebeldia sem causa pelo romantismo elegante para casais de meia-idade. O que não dá para engolir é que essa condição monárquica num trono de fantasia de programa de calouros autorize tal “soberano” a tratar uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) da República como tabula rasa.
Pois é o que está acontecendo. Há oito anos o notório cidadão Roberto Carlos Braga briga na Justiça para impedir que seja comercializada sua biografia escrita por Paulo Cesar de Araújo. O compositor e cantor de sucesso contratou advogados que convenceram juízes a interpretar os artigos 20 e 21 do Código Civil como restritivos à liberdade de expressão. E fizeram acordo com o biógrafo e a editora que publicou Roberto Carlos em Detalhes, que desagradou a seu tema, para retirar os exemplares das livrarias.
Depois da sessão do STF, dia 10, em que os nove ministros presentes jogaram no lixo da História toda a “sua estupidez”, considerando que a liberdade de expressão não pode ser censurada a priori, os representantes do astro já consideram o assunto resolvido desde antes. Perderam no Supremo, mas querem retroceder à decisão de primeira instância, alegando que o acordo celebrado é inquestionável do ponto de visto jurídico. Ou seja: a chantagem que levou ao pacto teria mais valor do que a manifestação explícita e douta de cada um dos nove ministros que soterraram a persistente carreira de censor da historiografia nacional a serviço de suas desprezíveis idiossincrasias.
Esses causídicos têm pleno direito de apelar para argumentos jurídicos na luta para respaldar os caprichos da celebridade. Pois, assim como a expressão, no Estado Democrático de Direito a queixa é livre e questionável nos tribunais. Que se questione, pois. Sem, contudo, atirar às matilhas da vaidade sem freios as conquistas incondicionais daquela tarde especial. Ou seja: atribuir a um contrato obtido sob pressão da defesa da honra não atingida a primazia sobre a decretação do fim do “cala-boca” é um achincalhe à democracia vigente. É estulto pensar que a revelação da perda de parte de uma perna leve um pedaço da honra junto. E o cantor nunca buscou reparação em juízo. Só quis sua parte em moeda sonante.
Pessoas que gostam demais do vil metal (e isso não é vício nem virtude, mas costume) tendem a superproteger as próprias fontes de renda e a superestimar ganhos de profissionais de outros ramos em comparações que não têm razão de ser. No fim de semana posterior à sessão histórica do STF, prestes a responder na comissão parlamentar de inquérito (CPI) da Petrobrás sobre cachês muito além dos valores de mercado por conferências do ex-presidente a convite de empreiteiras, o presidente do Instituto Lula, Paulo Okamotto, disse à Folha de S.Paulo supor que “esses comentaristas políticos que fazem palestras sobre Brasil devem cobrar muito mais” que R$ 300 mil. Esse é o custo das do ex-sindicalista, conforme ele admitiu.
É inócuo provar o despautério desse palpite. E também não será fácil produzir um livro sobre Roberto Carlos, por mais escandaloso que seja, capaz de amealhar em direitos autorais alguma quantia semelhante ao valor auferido pelo compositor com qualquer canção. “Tirar 10% do pobre biógrafo é muito para o biógrafo e pouco para eles”, disse, com autoridade e sensatez, Paulo Coelho, o escritor brasileiro de maior sucesso no mundo.
Em entrevista à Época, o autor de O Alquimista se disse chocado com a atitude de seus ídolos Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, que aderiram à tentativa canhestra do autor de Se Você Pensa sem levar em conta o legado do trio na luta contra a censura no Brasil à época da ditadura militar.
Em 2013, a ex-mulher de Caetano Veloso Paula Lavigne, filha de um bem-sucedido advogado carioca, criou a organização Procure Saber para avalizar a intervenção estatal no Escritório Central de Arrecadação de Direitos (Ecad), entidade privada que cobra direitos autorais para autores filiados a sociedades arrecadadoras. As sociedades nunca tiveram reputação das mais ilibadas, mesmo sendo um de seus fundadores um gênio da música popular como Humberto Teixeira, parceiro de Luiz Gonzaga, o “rei do baião”, no clássico regional nordestino Asa Branca.
A pretexto de sanear os direitos autorais, a tal associação apoia a intervenção do Ministério da Cultura numa atividade meramente privada, com a retórica populista de que a canção é do povo e, por isso, não é certo seus autores cobrarem por suas execuções. Para Coelho, Chico, Caetano e Gil entraram na fria de apoiar Roberto em sua empreitada mesquinha em troca de este apoiá-los em sua bajulação. O escritor não se deu conta de que os dois pleitos são produtos do mesmo entulho autoritário. A distorção espertinha dos artigos do Código Civil tentou ressuscitar a censura prévia. E a intervenção estatal na gestão dos royalties só quer furtar o autor para beneficiar o Estado gestor de tudo e as multinacionais produtoras de conteúdo, pelas quais os artistas estatistas são patrocinados e mimados. Poucos perceberam isso com a clareza de Fernando Brandt, coautor de Travessia e que nos deixou neste fim de semana.
O hino dessa celebração à mesquinharia de ídolos tidos como heróis da liberdade em raios fúlgidos é um velho sucesso de Erasmo Carlos, parceiro-mor de Roberto desde sempre: “Pega na mentira, corta o rabo dela, pisa em cima, bate nela”.
Jornalista, poeta e escritor
(Publicado na Pag. A2 do Estado de S. Paulo da quarta-feira 17 de junho de 2015)
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