José Nêumanne
Para
Dilma, a “bendita” herança de Lula inclui a confusão entre pessoa, partido e
Estado?
O
presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) aproveitou a leitura do voto com o
qual jogou a última pá de cal em qualquer pretensão de tratar como farsa o
escândalo da denúncia da compra de votos de apoio da base do governo com
dinheiro do contribuinte para não deixar passar ao largo a revelação de um
pernicioso hábito desta “novelha” República. Ele relatou a colegas e ao público
cativo do histórico julgamento o que chamou de “atentado veemente, desabrido e
declarado à Constituição”. Trata-se da lei autorizando a incorporação de “bônus
de volume” por agências de publicidade, cujo projeto foi apresentado
originalmente em 2008 pelo então deputado petista José Eduardo Martins Cardozo
(SP), atual ministro da Justiça(!). Em defesa do autor, diga-se que seu texto só
contemplava contratos posteriores à data de sua vigência. Mas mudanças feitas na
Comissão de Trabalho permitiram uma excrescência jurídica inominável: a vigência
retroativa da norma. O relator na comissão foi o deputado Milton Monti (SP), do
Partido da República (PR), cujo presidente, Valdemar Costa Neto (SP), é réu no
mensalão, idêntica condição de Paulo Rocha (PT-PR), que pediu uma semana para
analisar o texto. O petista Cláudio Vignatti (SC) sugeriu estender a regra a
contratos em execução e o relator incluiu até os que já estão encerrados.
“Desconcertante”, definiu Ayres Britto.
O
episódio grotesco, contudo, não terminaria assim. O mostrengo virou lei, usada
como pretexto pela ministra do Tribunal de Contas da União (TCU) Ana Arraes para
considerar lícita a devolução à agência de Marcos Valério, o “operador” do
mensalão, de bonificação de volume de anúncios do Banco do Brasil. Filha do
ídolo de esquerda Miguel Arraes e mãe do presidente nacional do Partido
Socialista Brasileiro (PSB), Eduardo Campos, aliados históricos do PT, a
ex-deputada não levou em conta o contrato entre o anunciante e a agência, que
proibia a bonificação, e foi desautorizada por seu par Aroldo Cedraz, que
suspendeu a decisão equivocada dela.
Mesmo
tendo Cedraz poupado Ana Arraes do vexame da completa desmoralização com a
condenação do STF e o voto arrasador do presidente da Corte, e tendo o ministro
Cardozo tentado se justificar diante do público, o episódio escuso serve para
ilustrar a desfaçatez com que se submete a coisa pública a causas privadas neste
país. O autor do projeto original defendeu sua iniciativa como sendo o
atendimento a um apelo do mercado publicitário. Estranho: a bonificação de
volume sempre foi prática comum entre anunciantes, agências e veículos e somente
a fúria de interferir em negócios privados explica tal iniciativa. Nada,
contudo, justifica as mudanças operadas depois em seu
texto.
Seja
como for, o episódio em nada parece ter abalado o prestígio do ministro com sua
chefe. Pois, como ele mesmo faz questão de propalar e ela nunca o desmentiu, o
advogado Cardozo, cujos conhecimentos de publicidade comercial não são
propriamente notórios, faz parte do seletíssimo grupo de conselheiros que ela
ouve sobre a tarefa de substituir ministros do STF aposentados ou em via de se
aposentar. Foi ele que levou Teori Zavascki ao encontro em que Dilma Rousseff o
convidou para a vaga de Cezar Peluso, que deixou o STF há nove
dias.
Mais
dignas de atenção são as evidências de que a sucessora de Lula não abre mão de
recorrer a seus maus bofes para ficar bem com o padrinho. A primeira foi sua
reação bruta e desproporcional ao artigo do ex-presidente Fernando Henrique
comentando, neste jornal, a “herança pesada” que ela teria recebido do ex-chefe.
O que inquieta nisso é ter ela descido do pedestal da Presidência só para deixar
claro que ninguém a intriga com o patrono. E Fernando Henrique, fora do poder há
dez anos, ainda voltou a ser atacado por Dilma de forma indireta: ela aludiu,
extemporaneamente, ao apagão de 2001, no governo dele, ao anunciar ontem a
redução de tarifas de eletricidade.
Outro
indício, ainda mais preocupante, foi seu pronunciamento oficial no Dia da
Pátria, ao usar rede de rádio e televisão para continuar sua querela com o
tucano, como se não tivesse descido do palanque. Além de manifestar uma fúria
sem nexo em episódio de menor relevância, ela abriu mão da postura discreta que
até então estava usando na campanha eleitoral. Não é condenável que presidentes
lancem e apoiem candidatos de seu partido ou de sua preferência. Mas, no afã de
se mostrar fiel à herança, que diz ser “bendita”, do antecessor, ela o superou
na caradura de usar tribuna oficial para fazer arenga partidária e execrar
adversários.
Dilma
já deu sinais de que buscará uma eventual, mas não mais improvável (como mostra
a tendência captada nas pesquisas de queda do tucano José Serra e ascensão do
petista Fernando Haddad), compensação em São Paulo para o formidável malogro
prenunciado para seu favorito Patrus Ananias em Belo Horizonte. A este se somará
a derrota anunciada do ex-ministro Humberto Costa para o poste ungido por
Eduardo Campos para suceder a um petista na prefeitura do Recife. E, ao estrear
na campanha em São Paulo, a presidente anunciou, de forma imprópria, que a União
será parceira da Prefeitura paulistana se o PT vencer. Nada deve impedi-la de
dizer que “Haddad é a pessoa certa para comandar a grande transformação de que
São Paulo precisa”. Mas não pode prometer que construirá “muitas creches” se ele
for prefeito. Ela foi eleita presidente para zelar pelo bem-estar das crianças
em geral, e não para privilegiar correligionários.
O
diabo é que, nesses exemplos, Dilma se mostra disposta a suceder a Lula no que
ele deixou de pior: a submissão da coisa pública a causas privadas de
companheiros de palanque e cupinchas de churrasco. Apesar de um passado de pouca
nobreza, esta República, que ela preside, ainda tem origem etimológica na
expressão latina res publica. E justo quando o STF prepara um salto de
sete léguas na questão ela propõe esse recuo?
Jornalista,
escritor e editorialista do Jornal da Tarde
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