João Ubaldo Ribeiro
Acho que, como eu, pelo menos alguns de vocês às vezes
resolvem, embora saibam que não dará certo, não ler mais jornais, nem
querer saber de noticiários. É tanta desgraça acontecendo, tanta
catástrofe, tanta monstruosidade, tanta gente sofrendo adversidades tão
medonhas que ou desviamos os olhos e o pensamento, ou perdemos de vez a
fé na humanidade e até mesmo qualquer esperança no futuro. Mas não
adianta. Jornal e noticiário são vício e necessidade, no meu caso
redobrados, porque me enfiaram numa redação de jornal aos dezessete anos
e, de certa forma, jamais saí dela inteiramente.
Claro, não adianta fugir e, para poder escrever, tenho de saber o que
está acontecendo. Ligo a televisão para pegar o jornal da manhã.
Aparece uma senhora chorando. Precisa fazer uma biópsia com urgência,
mas a seguradora à qual pagou pontualmente anos a fio abriu falência.
Corte para um senhor de voz meio embargada, ar desalentado. Pagara seu
plano com igual pontualidade, por mais de quinze anos. Em caso
semelhante ao da senhora, o plano também falira e ele não sabia o que
fazer, mesmo se o Estado garantisse a migração para outro plano, porque
ele não tinha dinheiro para quitar as novas mensalidades. A reportagem
informou ainda que, de 2010 para cá, cerca de oitenta planos faliram,
deixando, imagino eu, milhões de pessoas na mesma situação.
Olhei para o semblante dele. Menos idade que eu, talvez, mas mais ou
menos na mesma faixa. Deve estar aposentado, deve ter trabalhado a vida
toda e agora se esforça por sobreviver com dignidade. Podia ser eu,
podia ser a encantadora leitora ou o gentil leitor, Deus nos guarde. A
velhice, antes mais ou menos tranquila, tanto quanto a velhice possa
ser, vira subitamente um pesadelo. Todo dia nos aterrorizam com
histórias e reportagens terríveis sobre os hospitais da rede pública,
vemos gente empilhada em corredores infectos, centros de terapia
semelhantes a pocilgas, agonizantes à míngua de socorro, mulheres
parindo junto a ratos e baratas, tragédias familiares irreparáveis e
quase tudo o que tenha descrito do inferno quem, como Dante, já lá
desceu. O sujeito faz sacrifícios, priva-se de muita coisa, mas se
assegura de que não terá que enfrentar essa assombração. E aí, de
supetão, tudo desmorona, nada a fazer.
Sim, ele podia ser qualquer um de nós, o mundo dá muitas voltas.
Podia ser eu mesmo, se bem que meu plano não faliu e seja bastante
improvável que venha a falir. Fiz Bradesco e com certeza tenho muitos
companheiros de plano entre vocês. Mas fiz nos bons tempos, hoje a
situação é diferente, como sabem os companheiros. Lembro que, na época
meio duro, condição desagradavelmente costumeira em minha sofrida
categoria profissional, não pensei em economizar, ao contratar um plano
para mim e minha pequena família. Procurei uma empresa de solidez
inconteste, perguntei qual era o seu melhor plano, o camarada me disse,
eu engoli em seco e assinei. Foi-me vendida a expectativa de sempre
contar com atendimento médico conforme minha necessidade.
E até que não tinha queixa, a não ser dos aumentos nocauteantes que
se sucedem em cascata, à medida que o segurado vai ficando mais velho.
No mais, fui hospitalizado algumas vezes e tudo se deu como previsto e
esperado. E, apesar, de geralmente eu pagar aos médicos fora do plano,
já fui atendido por médicos credenciados, sem pagar. Mas agora as coisas
estão mudando. Segundo eu soube, minha seguradora não quer mais saber
de clientes individuais, só empresas e organizações. Deve ser isso, pois
a impressão, admito que meramente subjetiva, embora acentuada, é que
ela está fazendo o possível para os clientes individuais desistirem de
tudo o que já pagaram, praticamente ao longo de toda a vida adulta.
Exames de laboratório mais ou menos corriqueiros ainda são fáceis de
conseguir, apesar das filas crescentes. Mas exames mais complicados são
outra conversa. Cada dia é preciso esperar mais tempo por um
agendamento, cada dia o número de hospitais ou clínicas renomados parece
diminuir. E os reembolsos, tanto os feitos aos segurados quanto aos
médicos, hospitais, laboratórios e clínicas, são ridículos. Um advogado
amigo meu me disse que as seguradoras estão adotando, em certos casos, a
velha tática de jogar o barro à parede, para ver se cola. O freguês vai
se operar do fêmur, o seguro diz que não paga uma determinada prótese,
só paga uma outra, considerada pelo médico inferior ou inaceitável. Aí o
segurado entra em juízo e, me diz esse amigo, invariavelmente ganha e
os planos sabem disso. Apenas, como primeira reação, negam o pedido. Se o
prejudicado não tiver a ideia ou a cachimônia de procurar um advogado, a
caixinha mais uma vez tilinta no plano de saúde. Como aconteceu comigo,
aliás, numa operação de catarata. O Bradesco disse que não pagava a
lente prescrita, mas somente outra, bem mais barata, que o médico não
aceitava. Aí eu paguei o raio da lente, miséria pouca é bobagem e pouco
dinheiro eu tenho muito.
Apesar de citar meu caso, não escrevi nada acima por interesse
pessoal. Apenas achei o que me acontece mais ou menos típico, na chamada
classe média e com a maioria dos leitores, daí interessar a quase
todos. E, como não ia contar mentira nenhuma, disse logo o nome da
seguradora. Não é campanha, nem nada, é a veiculação de uma queixa
geral, não apenas dos bradesquistas. Os seguros de saúde não deviam
nortear-se por padrões de conduta meramente empresariais, não deviam ter
o lucro como objetivo em última análise exclusivo. Sua área não é a de
um comércio qualquer, a saúde é um bem e um valor da mais alta
relevância para a coletividade, uma questão de segurança nacional, como
se dizia antigamente. Mas, infelizmente, a coletividade não tem lobby,
só deputados mesmo - e eles estão ocupados em garantir seu feliz Natal e
próspero ano-novo.
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