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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O marketing cínico do dilúvio anunciado

José Nêumanne

Anunciar agora sistema infalível de prevenção prometido há cinco anos é mofar da dor alheia

Os números assustadores da tragédia provocada pelas enxurradas que se seguiram aos temporais na serra fluminense (o dobro dos mortos das similares em 1967, quando a área atingida ficou restrita apenas a Petrópolis) fazem emergir da lama que deslizou montanha abaixo, destruindo tudo e enlutando famílias, constatações e reflexões que, mesmo inúteis e inócuas, não podem deixar de fluir.

A primeira pergunta sem resposta é a que estabelece uma conexão entre a ameaça à camada de ozônio pelo aquecimento global e fenômenos meteorológicos como esses.

Chove desde que o mundo é mundo e chuvas como as que desabaram sobre a formosa área acontecem desde o tempo em que o calor das fogueiras de nossos ancestrais caçadores certamente não ameaçava a camada de ozônio nem alterava o rumo ou o volume de correntes marítimas e tampouco causava tempestades. Não dá para garantir nem para negar que aguaceiros de tal porte possam ter caído no tempo das cavernas e desabrigado algumas famílias de habitantes primitivos daquelas plagas.

Mas não se podem comparar esses eventos na Pré-História com este num planeta superpovoado, onde aquele privilegiado conjunto de morros e vales é disputado por qualquer apreciador de uma bela vista – o pobretão da favela ou o ricaço capaz de construir sua mansão na encosta. Para o primeiro vale a advertência que começou a ser feita desde que os refugiados da Guerra de Canudos, não tendo onde morar, fincaram suas choças nos morros que ornam a Baía de Guanabara, que encantou Cole Porter, e chamaram seus arruados de “favelas”, em homenagem a um arbusto do sertão.

É claro que a ocupação de áreas de risco pelos carentes de moradia é um drama que se amplia na proporção em que aumentam as famílias que não têm onde morar e mínguam as habitações que eles podem adquirir ou construir. Em metrópoles como Rio e São Paulo, restam-lhe poucas alternativas às encostas sobre as quais a ganância da indústria imobiliária ainda não depositou suas ambições de enriquecimento. Em regiões aprazíveis e próximas de um grande centro, caso da preferida pela família imperial para se refugiar da canícula litorânea, não há escolha para os pobres de Jó que improvisam seus tetos ou a burguesia endinheirada em busca de paz, conforto e ar puro. Em Petrópolis, Teresópolis, Nova Friburgo e adjacências, barracos ou palacetes não podem ser construídos em planuras, porque planuras não há. Há, sim, montanhas que sobem para o céu e descem para o vale. E vales que, debaixo das encostas, aguentam o peso do lodaçal que desliza quando a vegetação não consegue conter o desbarrancamento e desce a avalanche.

Sob o peso monumental dessa lama desmoronam barracos de lata e sólidas construções centenárias. Reclamar da ocupação indiscriminada de mananciais e áreas de risco com a cumplicidade da politicagem demagógica é chover no molhado, mas necessário. Porque não há tragédia coletiva que mobilize um homem público brasileiro em posto de mando a desafiar os carimbadores de fatos consumados e os grileiros da boa-fé do populacho sem teto.

No caso da serra fluminense, o buraco fica bem mais embaixo e o lamaçal vem de muito mais acima. Esta tragédia de proporções ainda não totalmente conhecidas mostra que não há áreas sem risco no território atingido. A serra só não é arriscada em sítios selvagens onde não existam prédios, pessoas, bens ou animais. Essa evidência não inutiliza a necessidade da responsabilização com nome, endereço, cargo e eventual pena em caso de culpa para os homens públicos que compram seus mandatos ao custo da mortandade nas tragédias das chuvas de verão. Mas torna relativa a justificativa única da permissão de construir em lugar impróprio, pois ali, como esta chuva mostrou, nenhum é apropriado.

Então, que fazer? Adquirir aparelhos de previsão meteorológica para permitir que cidades sejam evacuadas antes que o céu desabe sobre as montanhas? A tecnologia salva vidas, mas seu poder de fazê-lo é limitado. A constatação sazonal de que as autoridades locais foram avisadas pelos técnicos de que choveria é aleivosa, porque não há prefeito capaz de evacuar uma cidade do tamanho de Petrópolis cada vez que a meteorologia previr não o dilúvio universal, mas “chuvas de moderadas a fortes”. Se muitos habitantes da região se recusam a deixar casas dependuradas no abismo e isoladas pela lama, como imaginar que alguém, de sã consciência, possa convencer almas contadas aos milhares a abandonarem seus lares? E irem, aliás, para onde? Para o sambódromo? Para o Maracanã? Ora, essa!

O que revolta é ler a promessa de Dilma agora, que, feita por Lula há cinco anos, nunca foi cumprida, de instalar um infalível sistema de alerta para prevenir tragédias como esta. Pois se trata de marketing improvisado que escarnece da dor das vítimas. E saber que aquela região não dispõe de um plano B similar ao treinamento que os bombeiros fazem para prevenir incêndios em prédios. Pior: União, Estados e municípios apelidam de defesa civil algo que não defende ninguém de nada, e sempre termina sobrando para militares destreinados que correm feito baratas tontas de um lado para outro, ajudando heroicamente alguns, mas sem organização capaz de promover uma eventual evacuação improvável ou de socorrer as vítimas do dilúvio anunciado.

O Estado brasileiro é incompetente para prevenir e para remediar porque não estuda, não trabalha, não treina e não aprende com as tragédias pretéritas para evitar que as futuras sejam ainda maiores. Militares e civis limitam-se a garantir a própria impunidade no discurso vago e impessoal, repetido e pluripartidário dos mandatários de plantão. É uma situação vergonhosa que só poderia ser amenizada se esses maganões fossem identificados e punidos na forma da lei. Mas como fazê-lo, se são eles que fazem as leis?

Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde.

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