José Nêumanne
Política, espionagem e psicanálise compõem o enredo de O Punho e a Renda, romance de Edgard Telles Ribeiro
Telles Ribeiro, que chegou ao topo da carreira no Itamaraty: raro talento narrativo e coragem cívica
O bom escritor se conhece pelo princípio da obra. Meio caminho terá andado o autor para ter o texto bem avaliado se lhe providenciar um bom começo para cativar o olhar e, como ensina Gabriel García Márquez, segurar o fôlego do leitor. O Punho e a Renda, de Edgard Telles Ribeiro, vence este desafio com folgas. O narrador, diplomata noviço, busca uma palavra para usar num relatório e, de repente, como se baixasse o anjo da anunciação, um vulto sai da penumbra e lhe sopra o vocábulo, que cai como uma luva. Assim é apresentado o protagonista da história, que não é o narrador, mas seu melhor colega de trabalho na juventude. Um lance de mestre: narrador e leitor fisgados pela mesma isca.
Mas evidentemente um boa pegada no início não é suficiente para segurar uma história capenga. É necessário encontrar um bom fim. E não é que o dito romancista conseguiu um fecho estupendo para sua narrativa? Revelá-lo nesta resenha não será incorrer em pecado mortal nem mesmo capital ou até venal. O tema do livro é a longa noite dos porões na ditadura militar brasileira e a fábula que o encerra não descreve uma seção de tortura nas masmorras nem a saga de alguma mãe em busca de seu filho tresmalhado nas celas clandestinas do sórdido Gulag tupiniquim. Nada disso: o personagem da narrativa em questão faz parte do rebanho dos sobreviventes. E esta ficção de terror não foi contada com gritos, sussurros nem pontos de exclamação, mas em silêncio tenso e sepulcral no meio de ruidoso tumulto. Muito tempo depois de haver fugido de casa para escapar dos esbirros que o foram prender, ele encontra a irmã num ônibus urbano e se olham sem uma palavra, um sorriso ou um aceno – apenas o gesto do dedo dele selando o lábio para evitar a bandeira da emoção deslavada por parte dela. O medo conteve a euforia e manteve represada a surpresa.
O leitor arguto poderá argumentar que estas duas cenas poderiam ter sido filmadas por Costa-Gavras ou Michelangelo Antonioni. De fato, são cinema em estado de extrema pureza. Narrador e autor lecionam – ou lecionaram – cinema na universidade. Mas nem mesmo o mais ranheta dos críticos, depois de lê-las, deixará de reconhecer que foram lavradas na mais perfeita e canônica arquitetura literária. Aí é que emerge outro aspecto fundamental no bom romance e que este aqui resenhado tem: um miolo à altura da entrada e da saída do leitor de suas páginas. Edgard Telles Ribeiro saiu-se bem nesta empreitada. Sem querer ser mais irreverente do que porventura possa se propor um ocupante deste espaço fugaz – mas sendo –, é o caso de deixar registrado que ele escreve muito bem... como o faria um competente profissional estrangeiro da escrita. E muito além do amadorismo reinante nestes trópicos mais enfadonhos do que tristes.
Víboras de gravata. O Punho e a Renda narra os bastidores da diplomacia brasileira por ocasião de um dos mais sórdidos episódios da história latino-americana, a Operação Condor, esquema transnacional de colaboração clandestina entre serviçais civis e militares de direita dos regimes autoritários vigentes na América do Sul nos anos de 1970. Só isso pode dar ao leitor a ideia da oportunidade oferecida a quem enfrentou o desafio de escrever e a quem aceita a gozosa tarefa de ler seu texto. Trata-se de um roman-à-clef, aquele gênero literário em que personagens reais com nomes fictícios atuam em cenários históricos. Chega a ser divertido procurar no entrecho do livro figuras com traços de caráter muito comuns nos desvãos da política, que muda como as nuvens do céu, e nos corredores do Itamaraty, serpentário de silvos refinados e doces venenos.
A saga do aventureiro que serviu à sanha da direita e continuou a subir após algumas de suas vítimas no passado conquistarem o poder republicano chega a ser corriqueira, de tão frequente. Para Telles Ribeiro contar a história que contou, mesmo sendo passados 40 anos, teve de reunir ao talento narrativo coragem cívica. Nada disso lhe faltou em nenhum momento. E o recurso da chave, usado na ficção para bois seguirem anônimos nos currais, não o poupará de picadas de víboras desmascaradas, pois estas ainda poderão lhe prejudicar a carreira no Itamaraty, ainda que já seja embaixador.
Em todo caso, o que menos importa neste caso é saber quem na vida real corresponde aos personagens tecidos com precisão de joalheiro no texto que é longo, mas leve.
Importa mais é conhecer a natureza da história e suas implicações na vida de cada um, com todos os ingredientes bem misturados de política, guerra, colunismo social, espionagem e psicanálise.
Este livro, cujo título se refere menos aos punhos de renda e mais à força bruta e à corrupção, certamente elevará seu autor no pódio dos maiores ficcionistas em língua portuguesa. O exagero do emprego de tipos itálicos na composição da mancha gráfica e o mau gosto evidente do arame farpado usado na capa para insinuar que o volume possa conter o relato de algum sobrevivente de campos de concentração nazista, em nada impedir-lhe-ão a fortuna crítica que, com todos os méritos, lhe está reservada.
José Nêumanne é jornalista, escritor, poeta e editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e do SBT, prêmio Senador José Ermírio de Moraes de 2005 de melhor livro de 2004 com o romance O Silêncio do Delator e curador literário do Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro (IIPB).
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