José Nêumanne
Recuo no caso da iraniana é bem-vindo, mas não salva política externa do governo Lula
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus lugar-tenentes – o ministro oficial Celso Amorim e o chanceler oficioso Marco Aurélio Garcia – têm surpreendido o mundo com um tipo de política externa pouco respeitado, pelo menos entre Estados democráticos de Direito no Ocidente: a diplomacia da conveniência. Trata-se de uma leitura heterodoxa da ética da conveniência de Max Weber. E esse aparente pragmatismo a toda custa se traduz no slogan que o ministro de Relações Exteriores brasileiro cunhou para explicar a súbita adesão do chefe de governo brasileiro ao pleito de Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, tirano da Guiné Equatorial, país de colonização espanhola e francesa, de entrar na comunidade lusófona: “Negócio é negócio.”
Essa retórica de fazer corar o mais pétreo dos especuladores do mercado de capitais passou por cima de graves acusações de violação de direitos humanos. E, pior ainda, do fato de o ditador ter sido considerado o oitavo governante mais rico do planeta pela revista Forbes, apesar de (ou seria et pour cause?) o país por ele governado ser um dos mais pobres do paupérrimo continente africano. Mas esta não foi a primeira nem a única vez que Sua Excelência, do alto de sua respeitável biografia de herói da democracia construída sobre os escombros do regime autoritário tecnocrático-militar no Brasil, fez pouco-caso da vida humana em benefício das próprias conveniências, que ele e seus áulicos confundem com as da Pátria. Mais chocante que o relógio de ouro e diamantes exibido pelo mandachuva há 31 anos em seu país, o mais antigo presidente da África inteira, foi a gargalhada flagrada pelos fotógrafos quando Lula conversava com Raúl Castro, o irmão mais novo de Fidel, no instante em que o cubano era informado da morte do prisioneiro dissidente em greve de fome Orlando Zapata. O escárnio do líder de um partido que se diz de trabalhadores pobres, ao manifestar tal descaso pelo sacrifício do preso negro, pedreiro e mártir de uma ditadura ainda mais longeva que a de Nguema, assustou, mais do que surpreendeu, as boas almas do mundo que devotam genuína admiração ao self made man que ascendeu da mais baixa à mais alta escala social, tornando-se o mais poderoso e popular governante do Brasil desde o desembarque do português Tomé de Souza em praias da Bahia. E o susto foi tão legítimo como a admiração.
Engana-se, contudo, redondamente quem imaginar que essa gargalhada tenha sido o ápice das desastradas intervenções brasileiras no episódio dos dissidentes cubanos. Lula comparou-os com bandidos comuns em prisões brasileiras. E Marco Aurélio Garcia tentou ficar com o crédito pela libertação esporádica de um grupo deles, dizendo que os espanhóis, que participaram efetivamente do acordo que os soltou, só fizeram o gol numa jogada armada pelo Itamaraty.
A diplomacia lulista não precisou sair do Caribe para armar mais uma confusão causada por essa mistura de arrogância e ignorância que o professor Roberto Campos chamava de “arrognância”. Num lance de grosseria explícita, Sua Excelência resolveu ignorar a presença de Álvaro Uribe na presidência da Colômbia, menosprezando a soberania do vizinho amigo e democrático para beneficiar o compadre venezuelano Hugo Chávez. O desrespeito se assemelha a negar pedido de extradição do criminoso Cesare Battisti pela Itália, soberana e democrática, que lhe teria negado pleno direito de defesa.
A presidência da Colômbia, entre um vizinho arruaceiro e outro grosseiro, emitiu nota oficial na qual resumiu em poucas linhas a mentalidade que comanda a política externa brasileira nos últimos sete anos e sete meses: Lula tem dificuldade de distinguir o pessoal do institucional. Hábil negociador sindical, confunde a negociação em fóruns internacionais com as noitadas no bar de Tia Rosa, em São Bernardo, onde decidia os passos dos metalúrgicos nas greves no fim dos anos 1970. Para retaliar Uribe ele se dirigiu diretamente a Juan Manuel Santos, o eleito que tomará posse na presidência colombiana sábado, adotando atitude idêntica à assumida no mesmo dia pelas Farc.
Há uma semana, o jeito peculiar do lulismo de tratar da soberania dos povos produziu outra pérola da insensibilidade diplomática, quando o presidente brasileiro se recusou publicamente, como havia feito com os dissidentes cubanos, a pedir a comutação da pena de apedrejamento de uma mulher iraniana a seu “amigo” Mahmoud Ahmadinejad. “As pessoas têm leis. Se começarem a desobedecer às leis deles para atender ao pedido de presidentes, daqui a pouco vira uma avacalhação”, justificou seu desinteresse pela vida de Sakineh Mohammadi Ashtiani, viúva acusada de adultério.
Mas Lula, o insensível, virou Lula, o magnânimo, em seu palco preferido, o palanque de sua candidata à própria sucessão, Dilma Rousseff, em Curitiba, sábado passado. Ali, na certa convencido de que lhes seria mais conveniente apelar pela vítima do que apoiar o carrasco, candidatou-se, com uma frase infeliz, a herói mundial pela comutação da pena capital da mãe de dois filhos condenada por adultério, que, em países democráticos, caso do Brasil, nem é mais passível de pena como crime ou sequer contravenção. “Se vale minha amizade e o carinho que tenho pelo presidente do Irã e pelo povo iraniano, se esta mulher está causando incômodo, nós a recebemos no Brasil”, disse ele.
O recuo de Lula, mesmo não sendo atendido pelo destinatário, deve ser relevado em nome da boa causa. Elogiável será o efeito da metamorfose ambulante do presidente brasileiro pelo resultado que pode produzir. Mas não é exagerado lembrar que vidas humanas estão acima de interesses negociais e que a amizade pessoal nunca deve prevalecer sobre a liberdade individual. É bom que a diplomacia de conveniência do governo lulista tenha abraçado uma causa justa, mas tal mudança só produzirá efeitos positivos se vier com a consciência de que em diplomacia a conveniência não pode abrir mão do respeito.
Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde.
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