O amigo José Nêumanne me lembrou de reproduzir, espcialmente para os leitores lusófonos dos países irmãos, e para os leitores brazucas vivendo no exterior, o magnífico artigo abaixo. Boa leitura.
(Nota do Editor:Curiosamente, o sujeito na foto, apanhando da Polícia do Exército, se parece com Lula, quando mais jovem).
ROBERTO ROMANO
“...é preciso cuidado, porque as pessoas têm leis, as pessoas têm regras... Se começam a desobedecer às leis deles para atender ao pedido de presidentes, vira uma avacalhação”
Lula, recusando apelar em favor de Sakineh Mohammadi Ashtiani, que poderá ser apedrejada em praça pública
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Prezados senhores da esquerda brasileira:
Em 18/9/1969 foi decretada a Lei de Segurança Nacional, imposta pela Junta Militar. O seu texto previa exílio e pena de morte para os acusados de “guerra psicológica adversa, ou revolucionária, ou subversiva”. Contra ela se mobilizou parte da sociedade civil, intelectuais e políticos opostos ao arbítrio, às torturas, aos tratamentos humilhantes dos presos políticos e à censura. Estratégica na luta contra a lei tirânica foi a mobilização de Estados democráticos estrangeiros e de suas elites favoráveis aos direitos humanos no Brasil.
Figuras proeminentes da Igreja uniram-se aos advogados, jornalistas e gente do povo para entregar às instituições internacionais denúncias e pedidos de inspeção no Brasil. Aqueles líderes eram acusados, pelos que apoiavam o regime, de tentar “denegrir a imagem da nossa terra no exterior”. O slogan ditatorial – Brasil, ame-o ou deixe-o –, musicado por Dom e Ravel, reforçou a campanha supostamente patriótica que buscava apagar os gritos dos torturados. Existiam leis, mas os dignos intérpretes da norma jurídica foram calados, como é o caso de Evandro Lins e Silva, morto sem que o poder tenha reconhecido a injustiça contra ele, a sua cassação do Supremo Tribunal Federal. Existiam leis, mas elas não emanavam da soberania popular, surgiam das sombras, nos palácios.
Recordo o ensino de Norberto Bobbio. Poucos entenderam como ele, no século 20, a natureza da lei. Em magistral escrito, diz o jurista que
a política se divide entre a praça e o palácio, e retoma o dito de Guicciardini: “Entre o palácio e a praça existe uma densa névoa ou muro tão grande que pouco sabe o povo sobre o que fazem os governantes e porque o fazem, como se o assunto dos dirigentes fosse algo feito na Índia.” Bobbio indica o fato de não contarmos até hoje com uma sociologia da praça. E, no entanto, ela é fundamental na política. “Manifestação na praça” significa a multidão de pessoas indignadas com os palácios. A praça reúne muitos indivíduos, a sua forma aberta permite livres discussões. Quem para ela se dirige tem alvo comum: reivindicar direitos, ouvir líderes. “Na democracia representativa (...) a praça é a mais visível consequência do direito de reunião ilimitado quanto ao número de pessoas que possam exercitá-lo juntas e ao mesmo tempo” (Bobbio).
Finaliza o jurista dizendo que “palácio e praça são duas expressões polêmicas para designar, respectivamente, os governantes e os governados,
sobretudo o seu relacionamento de incompreensão recíproca, de estranheza, rivalidade, ainda hoje como no trecho de Guicciardini. (...) Vista do palácio a praça é o lugar da liberdade licenciosa; visto da praça o palácio é o lugar do poder arbitrário. Se cai a praça, o palácio também é destinado a cair.” A esquerda brasileira viveu o seu tempo de praça, quando enfrentou a repressão palaciana. Sob a ditadura, ela implorava a intervenção estrangeira para a defesa de seus direitos humanos.
Nos palácios de agora, apoia os que, no Irã e na África, torturam, massacram, caluniam os opositores.
Senhores da esquerda: se perguntados sobre a violação dos direitos, os adeptos do regime autoritário respondiam que as leis deveriam ser obedecidas. Nada falavam sobre a legitimidade legal, pois o assunto era proibido e censurado.
O presidente de hoje, com o Itamaraty,
usa linguagem idêntica à dos generais e juristas formados na escola de Francisco Campos. Ele usou a praça para subir ao palácio e levou consigo a turba dos oportunistas que jamais tiveram compromissos com os direitos civis ou humanos. Como diz Bobbio, para quem está no palácio a praça, ao invocar direitos, é lugar de liberdade licenciosa, “avacalhação”. Quem hoje é governo pode voltar à praça, a menos que deseje, por meios espúrios, garantir para si os palácios.
O nosso presidente não se recorda mais dos tempos em que era oposição. E apoia no Irã os que aplicam leis tirânicas, ali esvaziando praças com a ponta das armas. Aquelas mesmas praças eram cheias de cidadãos hoje presos, exilados, condenados à morte. Não é exigida coerência de ninguém. Todos podem trair os ideais que antes defendiam, ou pareciam defender. Mas não esqueçam, senhores da esquerda: a memória coletiva supera a propaganda que fornece popularidade aos ocupantes ocasionais dos palácios. Em tempo não muito distante o nome de Lula será posto ao lado dos realistas que negaram os direitos humanos em nome do “business”, como diz o Itamaraty. Caso os senhores ainda se imaginem na ala esquerda, deveriam atentar para a escolha de algo que define a sua dignidade: preferem a truculência palaciana ou a “avacalhação” da praça?
Optando pela primeira, os senhores entram para o
clube de Mussolini, Francisco Campos,
Filinto Müller, Pinochet e similares. Se a escolha for pela segunda, aceitem os cumprimentos de Sobral Pinto, García Lorca, Pablo Neruda, Evaristo Arns,
Vladimir Herzog. Não existe muito tempo para o seu juízo: amanhã, na praça ensanguentada em que se transformou o Irã, os direitos humanos serão alvejados na carne de
Sakineh Mohammadi Ashtiani.
Sob o silêncio cúmplice dos palácios brasileiros.
P. S.: Solicitar ao Irã que exile a vítima e a instale em nosso país, como sugeriu o presidente, é agir como carcereiro de povos alheios. É transformar o Brasil em imensa colônia penal terceirizada. Nada mais.
FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP, É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ‘O CALDEIRÃO DE MEDEIA’ (PERSPECTIVA)
Tenho a honra, e não estou me gabando disso, de dizer que meu primo, de outra geração, Vasco Leitão da Cunha, era diplomata de carreira, e foi ministro da Justiça interino do ditador Getúlio Vargas. Mas Vasco não servia ao governo do ditador de Getúlio, servia ao Estado.
ResponderExcluirPor isso, prendeu, pessoalmente, o tenebroso chefe de polícia de Getúlio Vargas, o major Filinto Muller. Com essas palavras: "Senhor major, o senhor está preso; recolha-se à sua casa". Getúlio não teve peito de desautorizar Vasco.
Eis a diferença entre servir ao governo de turno, e ao Estado, perene.