Todos são
solidários a Gleisi, mas ninguém o é às vítimas do furto de que o marido é
acusado
Desde que a
reputação de herói começou a forjar a armadura com a qual a opinião pública
nacional protege a condição incólume da ação do juiz federal paranaense Sergio
Moro, a inveja, o ciúme e o instinto de sobrevivência de alguns colegas de
ofício dele passaram a maldizê-la com fervor. A primeira arma dessa luta vã é
retórica: o comandante da Operação Lava Jato “não é nem pode ser o único juiz
honesto do Brasil”. Isso não basta para convencer o cidadão comum a abrir mão da
“república de Curitiba”, amada pelos representados e temida pelos representantes
de nossa democracia cabocla, pois esta preserva um raro resquício do conceito
basilar do Estado Democrático de Direito, até segunda ordem vigente entre nós: a
igualdade de todos perante a lei. Em seguida a esse desafio, a esperança de
mantê-la, ressurgida nos dois mensalões, o tucano e o petista, começou a plantar
êmulos de Moro pelo País afora. Colegas menos expostos à luz dos holofotes se
dispuseram a mostrar que há juízes em Berlim. E até mesmo fora do
Paraná.
Na semana
passada, emergiu do noticiário outro desses exemplos de que nem tudo é
procrastinação no Judiciário pátrio. Chama-se Pedro Bueno de Azevedo, tem 38
anos e chefia a 6.ª Vara Criminal em São Paulo. De suas decisões emergiu a
Operação Custo Brasil, que revela uma das maiores ignomínias perpetradas por
criminosos de colarinho branco na História de nossa República: o pagamento de
propinas ao partido político que capitaneia o time que governou o Brasil durante
13 anos, quatro meses e 12 dias, até o impeachment de Dilma Rousseff. Não é o
maior no volume de furto. Mas o mais indecente na natureza do butim: o pagamento
de propina para políticos fiéis a esse desgoverno e a seu partido, o PT,
tungando sem anuência da folha de pagamento de um ministério, o do Planejamento,
a cada mês e em taxas módicas, o suficiente para passar em brancas nuvens e
“sair na urina”. Paulo Bernardo, duas vezes ex-ministro, despontou no alto da
ponta desse iceberg.
O fio da meada
da devassa, feita pela Polícia Federal (PF) e pelo Ministério Público Federal
(MPF) sob a égide de um juiz isento e insuspeito, foi puxado do depoimento do
vereador Alexandre Romano, de Americana, na Operação Lava Jato. Não há, contudo,
como estabelecer conexão com um laivo de perseguição do implacável Moro e seus
intocáveis. Tornada notória na mesma ocasião em que o coordenador da Lava Jato,
Deltan Dallagnol, cunhou o lema do caráter devastador do roubo generalizado do
dinheiro público no Brasil – “a corrupção é um serial killer sorrateiro”
–, a operação jurídico-policial carrega a denominação mais exata do que qualquer
outra antes empreendida. Custo Brasil diz tudo.
Os funcionários
que tomaram empréstimos consignados de 2010 a 2015 pagaram R$ 1,25 pelos
serviços da consultoria Consist, que, na verdade, custaram R$ 0,30, ou seja, um
quarto. Do restante foram originados os R$ 100 milhões entregues aos
ex-tesoureiros do Partido dos Trabalhadores João Vaccari Neto e Paulo Ferreira.
Ex-deputado federal pelo PT do Paraná, o ministro do Planejamento de Lula e de
Comunicações de Dilma ficou, segundo os investigadores, com R$ 7 milhões. Isso
parece lana-caprina se comparado com os bilhões furtados de Petrobrás, BNDES e
fundos de pensão.
Mas o procurador
Andrey Borges de Mendonça, ao descrever o furto, lembrou que “a corrupção não é
um privilégio da Petrobrás”, ela “está espraiada como um câncer”, e “o coração
do governo estava agindo por esse mal”. Esse vício maligno, descrito por
Dallagnol como “uma assassina sorrateira, invisível e de massa... que se
disfarça de buracos de estradas, de falta de medicamentos, de crimes de rua e de
pobreza”, acabou flagrado ao sair do bolso dos contribuintes para rechear contas
bancárias de bandidos, passando pela folha de pagamento de servidores enganados
de forma fria e cruel.
A Custo Brasil
desnuda ainda uma expressão funesta da representatividade de nossa democracia: o
corporativismo nefasto de “representantes” dos cidadãos, que mimam parceiros da
corporação política e esquecem os representados. O PT, fundado para pôr fim à
politicagem e à corrupção, não se solidarizou com os servidores, dos quais 46%
dos sindicatos são filiados à CUT, nem com os mutuários de “sua” Bancoop ou os
acionistas de “nossa” Petrobrás. Mas, sim, com ex-tesoureiros e mandatários
vassalos do desgoverno afastado.
O Senado, por
decisão do presidente, Renan Calheiros (PMDB-AL), exigiu do Supremo Tribunal
Federal (STF) a anulação da busca e apreensão na casa de Bernardo, pedida pelos
promotores, autorizada pelo juiz e efetuada pelos policiais. Motivo: o preso é
casado com uma ex-chefe da Casa Civil de Dilma, Gleisi Hoffmann, que, senadora,
tem direito a impunidade seletiva, vulgo foro privilegiado. Assim, o “direito
alagoano” reescreve o romano e o anglo-saxônico ao instituir o puxadinho do
privilégio, garantido no foro de Murici, em que os dois gozam o benefício de um
pelo tálamo de ambos.
Essa comiseração
corporativista inspirou a desfaçatez dos maganões. Com o tom exaltado com que
execra Dilma, mas sem mais autoridade para manter a exaltação ao impeachment, o
líder tucano na Casa, Cássio Cunha Lima, vociferou contra a violência de juiz,
promotores e policiais, que “humilharam” a coleguinha casada com o indigitado.
Sem levar em conta que o juiz tinha vedado na busca a coleta de quaisquer
pertences ou documentos da esposa do procurado. O insigne líder do partido, que
jura fazer oposição, não fez justiça aos funcionários furtados, mas aderiu ao
coro mudo dos omissos, em que petroleiros calam quanto à bancarrota da
Petrobrás, bancários ignoram o uso desavergonhado do BNDES e sindicalistas, o
arrombamento dos fundos de pensão.
Na algaravia
geral brasileira não se ouve uma só voz que se apiade do cidadão comum ou zele
pela Pátria, mãe gentil.
Jornalista,
poeta e escritor
(Publicado na
Pag.A2 do Estado de S. Paulo de quarta-feira 29 de junho de
2016)
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