Na teoria, o
sistema de governo no Brasil é presidencialista. Na prática, vige um
semipresidencialismo de coalizão. Neste, o presidente manda e os parlamentares o
chantageiam permanentemente, sem terem condições de mandar sequer no Orçamento
da União, a principal lei da República. Mas, com capacidade para arrancar do
Poder Mandante (muito mais do que Executivo) todos os privilégios para seus
membros, o Legislativo não se responsabiliza por praticamente nada. E o
Judiciário protela mais do que julga. No fundo, vige sempre, agora mais, o
oportunismo, que, na crise, prospera, mas também fica nu.
Essa radiografia
dos intestinos da República como ela é não resulta exclusivamente da alta
tecnologia e da falta de decoro, que permitem o grampo de telefones, a revelação
de e-mails e a publicação de gravações de conversas privadas. Mas também da
hipocrisia generalizada, que põe à venda na feira das ilusões o despudor mais
descarado em nome dos conceitos mais nobres. É o caso da antecipação em dois
anos da eleição presidencial de 2018 como forma mais “democrática” de resolver o
impasse causado pelo processo de impedimento da presidente da República.
Afastada do poder por um prazo de até seis meses para responder a um processo,
ela poderá ser alijada de vez do cargo e substituída pelo vice-presidente,
momentaneamente no exercício deste.
Não se trata só
de uma quimera, um projeto ou um lance de esperteza. É um golpe, para usar a
palavra posta na moda pelos asseclas e vassalos do Partido dos Trabalhadores
(PT), que quebrou a Petrobrás, desempregou milhões de assalariados, fechou
centenas de milhares de empresas, depauperou a economia e paralisou a gestão do
Estado Democrático de Direito. Não é um pronunciamento militar clássico que joga
a Constituição no lixo, rasga-a à força de baionetas ou a torna periódica, como
os que derrubaram o Império, a República Velha e a democracia liberal de 1946.
Mas apenas uma cusparada nela.
Luiz Inácio da
Silva recorreu à sua lábia incomum para ascender à Presidência da República duas
vezes e pôr no lugar quem bem ele quis. Mas terminou por fazer um mal enorme à
própria biografia e à sobrevivência de 200 milhões de patrícios. Agora esse
ex-líder sindical planejou e tenta construir uma boia de saliva para emergir
vivo do tsunami pelo qual ele é o maior responsável. Desmascarado, se não por
ter chefiado a organização criminosa composta por dirigentes dos partidos com
que mandou e desmandou no País nestes 13 anos, 4 meses e 12 dias para praticarem
a maior rapina da História, por no mínimo ter dela participado, apela de novo
para a capacidade de iludir para ficar de pé neste
instante.
Para isso, Lula
dispõe-se a desmentir Tancredo Neves, que avisava às raposas felpudas do PSD
mineiro que a esperteza é um bicho que, quando cresce demais, engole o dono.
Para ser mais esperto do que a maior esperteza o for, ele sabe que precisa
contar com o oportunismo de próceres políticos que podem pegar uma carona em sua
balsa de saliva.
Já aderiu a essa
cantiga de sereia a ex-senadora petista Marina Silva. Ministra do Ambiente no
primeiro mandato dele e sobrevivente à luta pela redenção dos povos da floresta,
que tem em Chico Mendes um mártir de fama internacional, ela tem um partido pra
chamar de seu, a Rede Sustentabilidade, e a fisionomia identificada com as de
pobres e oprimidos que todo colega de ofício gostaria de ter. Essa era uma
vantagem de Miguel Arraes, que, oriundo da mais antiga e próspera oligarquia
rural nacional, representou como ninguém com os traços marcados de suas rugas o
rosto do sertanejo miserável, vítima da seca e do coronelismo. Agora Marina
hasteou a bandeira popular do “nem Dilma nem Temer”, na certa porque pesquisas
de intenção de voto a dão como favorita, mas quem garante agora que em 2018 ela
ainda será?
Na condição de
um dos 81 senadores que decidirão se o provisório Temer fica ou a afastada Dilma
cai, o senador Cristovam Buarque joga sua reputação ilibada numa candidatura
presidencial que o fez mudar do PT, de que saiu após ter sido demitido do
Ministério da Educação por Lula numa chamada telefônica internacional, para o
PDT. Agora está no PPS, pois o chefão de seu ex-partido, Carlos Luppi, prefere
um governo em extinção à mão a uma disputa sedutora, mas
improvável.
À espreita
completa o Trio Esperança outro senador, Aécio Neves, presidente do PSDB. Ele
comunga os mesmos interesses dos adversários, mas prefere esperar, pois deve ter
percebido que abusou ao alimentar o monstro da esperteza e o viu devorar porção
significativa dos 51 milhões de votos que teve em 2014 e dificilmente voltará a
ter agora. Talvez seja mais cauteloso esperar para observar até que ponto
chegarão seus correligionários que se oporão ao seu voo do ninho tucano de Minas
direto para a rampa palaciana.
Talvez seja mais
sensato para o presidente do que se acha, embora na prática não comprove sê-lo,
o maior partido da oposição esperar que seus desafiantes naufraguem, cada qual
na sua tempestade. O governador Geraldo Alckmin arrisca-se a perder o controle
do PSDB em São Paulo se ocorrer a anunciada derrota de seu candidato à
Prefeitura da Capital, João Dória. E o senador José Serra pode afundar se a nau
capitaneada por Michel Temer naufragar no Mar das Tormentas de um ministério,
com os arautos da esperança Serra e Henrique Meirelles e vários parlamentares
com dívidas a pagar à implacável “república de Curitiba”, à prova de
queda.
A História
mostra que, nesse quadro, pode vencer um inesperado, como Jânio e Collor.
Joaquim Barbosa, por exemplo. Desmentem suas juras de que não quer concorrer
suas manifestações públicas contra o impeachment, et pour cause, contra a
Constituição, que ele deveria conhecer bem. Seja como for, esta será a primeira
vítima do eventual vencedor.
Jornalista,
poeta e escritor
(Publicada na
Pag 2A do Estado de S. Paulo na quarta-feira 1 de junho de
2016)
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