Roberto Damatta - O Estado de S.Paulo
Aos 11 anos, quando entrei no ginásio e ganhei do meu pai uma caneta Parker com meu nome gravado, senti que algo muito sério havia ocorrido comigo. Virei "ginasiano", dizia o pai que, criado em Manaus, foi um orgulhoso aluno do Ginásio Amazonense Pedro II. Naquele tempo, era comum o uso do paletó, e no seu inútil bolsinho "de fora" usava-se um lenço combinando com a gravata e, no canto do bolso, como "enfeite" e sinalizador social, enfiava-se uma caneta! Éramos um País de analfabetos antes de sermos um país de subletrados e de burros doutores ideologicamente pautados. A caneta de ouro compondo a figura do "doutor" (substituto do aristocrata) sugeria que o sujeito assinava o nome.
Compreendi o significado da caneta demarcadora de minha passagem para o curso secundário quando, já universitário e querendo ser revolucionário, um colega politizado relacionou a "nossa geração" aos "privilégios" e a contrastou com os "oprimidos" sem escola que escreviam de modo hesitante, desenhando as letras, traçando-as no papel ao contrário do que manda a caligrafia clássica.
Escrever "à tinta", como se dizia, era algo ritualizado que ia da escolha do papel para o que se ia dizer, pois a caneta-tinteiro borrava e sua escrita não era facilmente apagada.
Escrever com a minha Parker preta listrada de dourado era fazer a passagem do transitório e barato lápis, cujas pontas gastavam e quebravam e cuja escrita não resistia a uma banal borracha, para o definitivo: para a escrita "à tinta". Que responsabilidade eu tinha quando pegava essa caneta para escrever e foi com ela que tracei as sempre mal traçadas linhas da minha primeira carta de amor. Um amor a ser tão eterno quanto a tinta e que não durava mais do que um long-play de Frank Sinatra.
Ali eu vivi um inexorável sentimento de passagem do tempo. Estava ficando velho. E velho fui ficando quando alguma passagem ocorria na minha vida. Todas as primeiras e últimas vezes foram marcadas e eu só tive consciência delas porque algo ou alguém as assinalava.
A sensação de transitar por várias etapas críticas do meu ciclo existencial que começou com o nascimento e o batismo; seguiu para a infância do time de futebol e da primeira comunhão; prosseguiu para puberdade dos bailes, do primeiro namoro e beijo; desembocou no casamento; foi agraciado com a paternidade e um dia virá com a morte - o evento mais crítico de todos, o qual, infelizmente, será o único que eu não vou poder compartilhar com vocês, meus queridos leitores - foi toda construída por outras pessoas.
Foram todos urdidos de fora para dentro, por meio de conversas, presentes, admoestações, rituais, aprovações, elogios e reparos feitos por um outro. Acentuo esse "outro" porque sem ele eu não seria capaz de saber que tento ser simultaneamente um indivíduo autônomo e livre; e uma pessoa devedora de muitas pessoas e relações as quais despertaram os vários "eus" que convivem dentro de mim.
O individualismo do anglo-eurocentrismo, adotado com a santa ignorância de tudo o que chega de fora no Brasil, pensa que pode ficar preso ao velho e inconsciente solipcismo do "só eu sei o que se passou comigo e portanto ninguém melhor do que eu para falar da minha vida", como revelou, com o viés dos censores, o "rei" Roberto Carlos numa entrevista recente. Mas o holismo que sustenta e legitima o individualismo e pretende proteger a vida pessoal dos que vivem se expondo por meio de seus talentos criativos diz que nós só sabemos quem somos quando ganhamos de presente uma caneta; quando um amigo nos corrige; ou quando somos atingidos por uma opinião cuja maior virtude é mostrar algo não visto ou oculto de nós mesmos.
Por isso as autobiografias são tão fantasiosas quanto as biografias. Pois elas só existem como artefatos construídos, e qualquer compromisso entre a liberdade de falar do outro com liberdade é - como argumentou um mestre do gênero, Ruy Castro, na Folha de S. Paulo do dia 1.º do corrente - não é só um dado básico da visão de fora (o ponto de vista do outro), mas da própria vida social que, em todas as suas dimensões, requer e precisa do outro. Seja como um aliado, seja como um advogado, seja como um contrário e, mais que isso, como um alternativo. Aquele que passou pelo que passamos e que, com os mesmos eventos e experiências, construiu um quadro diverso do nosso. Tentar controlar e reduzir a visão de fora é uma violência porque é um ato de negação do outro. Esse outro que é o sal e, como dizia Sartre, o inferno da vida.
Não fosse esses atos externos eu não mudaria de ideia e de hábitos. Jamais saberia que tenho sido muitos. Mas, mesmo na dúvida e no sofrimento da revelação das minhas limitações ou da minha pusilanimidade, eu sei que o outro é básico na produção da minha vida. Se eu fosse um cantor, eu saberia pela prática que é esse outro (o chamado público) quem me consagra e me dá como um dom a incrível relação chamada sucesso.
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