José
Nêumanne
Nossos pobres
pagarão por consultas a médicos cuja perícia não será atestada, como lei
exige
Como se trata de
assunto que interessa e de certa forma pode pôr em risco a vida de milhões de
brasileiros pobres, convém esclarecer de vez os pontos obscuros do programa
intitulado Mais Médicos, com o qual o governo federal propõe pôr fim às falhas
do atendimento de saúde pública no País.
O primeiro ponto
a ser esclarecido diz respeito à parte que esses profissionais têm nas
deficiências e carências dos hospitais sustentados por dinheiro do contribuinte.
As associações de classe e os conselhos que regulam o exercício da profissão,
que de fato exige muita perícia e ética, prestariam um bom serviço à categoria
se reconhecessem sua parcela de culpa, que é óbvia e grave, particularmente na
questão do atendimento precário, na lastimável situação geral. Ao concentrarem
todos os seus esforços no combate ao desembarque massivo de colegas vindos do
exterior, conselhos e associações dão ao governo – e, sobretudo, ao ministro da
Saúde, Alexandre Padilha, evidentemente de olho na colheita de votos na eleição
estadual paulista no ano que vem – a oportunosa ensancha de atribuir à categoria
mero interesse corporativista.
Profissionais da
medicina têm o excelente argumento de tentar fugir de periferias de metrópoles
brasileiras por culpa do risco de morte que podem sofrer ao tentar salvar vidas
de gente carente nos bairros populares. Mas ele não vale para regiões inóspitas
na Amazônia ou no sertão nordestino. Se é possível ao governo garantir o
atendimento dos pobres que moram nesses ermos com estrangeiros capacitados a
preencher tais lacunas, não fazê-lo por reserva xenófoba de mercado profissional
chega a ser um atentado contra o direito de todo brasileiro à cura e à
vida.
Só há dois
argumentos irrespondíveis a essa tentativa. O primeiro será preencher as vagas
com brasileiros, mas, infelizmente, não há mão de obra capacitada disponível
para tanto. O outro, assegurar a quem já tem acesso ao atendimento na rede
pública um serviço minimamente decente.
O segundo
argumento não resolve o problema de quem não tem acesso a consultórios e
ambulatórios, inexistentes nos confins do interior deste país continental. Mas
ao menos limpa a imagem da categoria, aplicando-lhe uma demão de dignidade
ética, regida pelo juramento que reproduz as palavras do grego Hipócrates,
renegado na prática comum, particularmente quando o cliente não pode arcar com o
pagamento das consultas. Infelizmente, não são incomuns os exemplos de preguiça,
arrogância e, às vezes, até intolerância da parte de quem tem por obrigação
zelar por um convívio respeitoso e harmonioso com uma clientela já tão
maltratada pelas dificuldades de sua vida.
Pode-se
argumentar, e com razão, que os casos de desídia e estupidez na relação
médico-paciente, mesmo nos prontos-socorros das regiões mais carentes, não são
habituais. Mas, mesmo sendo a frequência inferior aos exemplos de abnegação,
convém que as entidades representativas do ofício fiscalizem com menos
corporativismo e mais imparcialidade e rigor as exceções, para que estas
confirmem a boa regra.
Reconheça-se que
a falta dessa prática não justifica a esperteza amoral com que o governo federal
– presente até nos pronunciamentos da presidente da República – tenta transferir
para os médicos, e apenas para eles, todas as graves mazelas do péssimo
atendimento nos hospitais públicos brasileiros. Na rede destes falta muito de
tudo: equipamentos, medicamentos e pessoal paramédico preparado para o tranco de
um dia a dia pesado. Mas os gestores do Estado – do legislador municipal à chefe
do governo federal, sem esquecer as instâncias estaduais – estão a anos-luz do
paciente pobre forçado a esperar meses a fio por uma consulta e tempo demais
para ser salvo por uma cirurgia. Inculpar apenas quem tem contato direto com o
doente é covarde e desumano.
Desde junho,
quando as multidões clamaram por hospitais a um governo que construía arenas
esportivas de “padrão Fifa”, Dilma Rousseff tem ido e voltado, proposto e
recuado, em pronunciamentos públicos, providências que se referem exclusivamente
à interface pessoal do sistema. A ideia de obrigar recém-formados num curso de
seis anos a trabalhar mais dois para o Sistema Único de Saúde (SUS) foi um
absurdo exemplo desse viés.
O programa Mais
Médicos é outro. A forma como se importam 4 mil cubanos para atender brasileiros
pobres nos ermos incorpora riscos. Não se trata de uma contratação, mas de uma
esmolinha para os irmãos Castro, que mandam para o Brasil quem quiserem, recebem
os salários de R$ 10 mil por mês para cada um, por intermédio da Organização
Pan-Americana de Saúde (Opas), e remuneram os enviados com valores incertos e
não sabidos. À chegada dos primeiros deles ficamos sabendo que vieram “ajudar”,
e não “ganhar dinheiro”, e que estão “felizes” com isso – mesmo alertados de que
não poderão aproveitar para permanecer no Brasil, até porque suas famílias
ficaram lá e eles nunca poderão ficar aqui.
Não importa se
os cubanos terão remuneração vil num mercado que exige muito, mas paga bem.
Importa, sim, que serão encarregados de curar desvalidos sem que tenham
certificada sua perícia profissional, o que é exigido por lei. Além disso, a
anamnese do queixoso exige o domínio de um idioma comum, que permita ao
consultado compreender sua queixa. Cubanos falam um castelhano de difícil
entendimento mesmo por outros praticantes do idioma de Miguel de Cervantes.
Amazônidas e sertanejos comunicam-se com dificuldade com lusófonos do Sul e do
Sudeste do País. Como essa barreira será transposta? Ora, os egressos terão
curso de três semanas para dominar o vernáculo. E esse prazo exíguo não é a
única temeridade para os pobres que pagarão para consultar médicos sem nenhuma
garantia da competência destes.
Jornalista,
escritor e poeta
(Publicado na
Pág. A2 do Estado de S. Paulo da quarta-feira 28 de agosto de
2013)
Nenhum comentário:
Postar um comentário