Permanência de
Chávez no poder sem posse configura autogolpe continuísta de
chavistas
Não falta boa
vontade aos amigos e prosélitos de Hugo Chávez fora da Venezuela para
justificarem as estripulias feitas pelo comandante para decretar como
democrático o regime “bolivariano” que impôs ao país, dividido entre seus
adoradores e os que o demonizam. As reformas que ele instituiu na Constituição
para se perpetuar no poder são avalizadas como manifestações de apreço do líder
a seu povo, que ele tirou da miséria. A imposição de um Judiciário fiel a seus
caprichos é descrita como uma necessidade para barrar as pretensões de uma
burguesia cúpida que deve ser afastada do poder republicano para o bem do povão
aquinhoado com as graças produzidas pela renda auferida com o petróleo
farto.
No Brasil, a
condescendência da esquerda com o golpista malogrado que se tornou um emérito
ganhador de eleições, feito em que pode ser equiparado aos de Adolf Hitler na
República de Weimar e Benito Mussolini na Itália, alcança os píncaros da
incoerência e da amnésia. Até hoje, Fernando Henrique é execrado pelos
esquerdistas patrícios por ter patrocinado a emenda que incorporou a reeleição à
norma constitucional. Embora não haja uma só evidência de que tenha ocorrido
fraude na votação da emenda à Constituição e, mais, embora Lula tenha usufruído
seu efeito e Dilma se prepare para fazer o mesmo, sempre que alguém lembrar o
mensalão como evidência de delinquência no PT no exercício do poder republicano
aparecerá uma voz lembrando a “compra dos votos para a reeleição”. Mas,
comparada com a frequência com que Chávez emendou a Constituição venezuelana
para mais uma renovação de mandato, a reeleição brasileira é pinto. E, ainda
assim, não há registro de uma crítica, um comentário desairoso, uma piada que
seja, sobre a resistência do presidente venezuelano a deixar o
posto.
E sempre que o
Judiciário do país vizinho se curva de maneira evidente aos interesses do grupo
no poder, isso é noticiado como se esse Supremo de fantoches a serviço do
governo fosse tão autônomo como o de uma democracia que se
preze.
Nada, porém, até
agora se equivaleu à justificativa despropositada que tem sido atribuída ao
autogolpe dos chavistas (do qual dificilmente Chávez teria participado, de vez
que ainda não deu o ar de sua graça por imagem nem por voz) para permanecerem no
poder, mesmo não tendo seu chefe tomado posse, como é praxe nas democracias.
Ora, dirá (e disse) o Judiciário da Venezuela, “posse é mera formalidade”. Nunca
ninguém terá ousado tanto, nem mesmo o paraguaio Alfredo Stroessner, que se
orgulhava dos 90% dos sufrágios obtidos em eleições cujos resultados eram dados
como indiscutíveis por tribunais escolhidos em práticas similares à ocorrida no
sui generis regime “bolivariano”.
O artigo 233 da
Constituição da lavra de Chávez estabelece que a ausência absoluta do presidente
é caracterizada por morte, renúncia, destituição decretada pela Suprema Corte,
incapacidade física ou mental permanente certificada por equipe médica designada
pela Suprema Corte e aprovada pela Assembleia Nacional, abandono do cargo
(declarado como tal pela Assembleia) e revogação popular do mandato. Em caso de
ausência absoluta do presidente eleito antes da posse, deve ser realizada nova
eleição nos 30 dias consecutivos seguintes. No período da eleição até a posse do
novo presidente eleito, o presidente da Assembleia Nacional assume interinamente
o poder. E o artigo 234 determina que, no caso de ausência temporária do
presidente, o vice-presidente exerce o poder por um período de 90 dias, que pode
ser prorrogado por mais três meses por decisão da Assembleia Nacional. Se a
ausência temporária superar seis meses, a Assembleia definirá por maioria se ela
deve ser caracterizada como ausência absoluta.
Chávez está em
Havana, onde foi operado. O mundo inteiro sabe que ele está à morte, mas apenas
seus médicos cubanos e asseclas venezuelanos podem garantir se está
vivo.
O comandante
está no poder há 14 anos e ganhou um mandato que terminaria em 2019, quando
completaria 20 anos de mando. Esse mero registro dá conta do desprezo que o
prócer “bolivariano” tem por um dos cânones do Estado Democrático de Direito: o
rodízio no poder. Ninguém está querendo dizer que o comandante não seja amado
pelo povo nem que, mesmo morto em Cuba, não seria reeleito se novas eleições
fossem convocadas hoje. Mas a matemática mostra que seu mandato de 14 anos
representa quase o dobro dos 8 a que Fernando Henrique e Lula tiveram direito e
que Dilma pode almejar, se nossa Constituição não for
alterada.
É acintosa a
interpretação anunciada por Luísa Estella Morales, presidente do Tribunal
Supremo de Justiça (STJ), ao aceitar o pleito do governo que a nomeou de que não
há a exigência constitucional da posse. Mas nem o Judiciário aparelhado pelo
chavismo rasgar a Constituição que Chávez impôs se compara à cusparada dada por
brasileiros que fingem ser democratas ao equipararem a falta de Chávez na posse
em Caracas à posse sem Tancredo em Brasília. Em 1985, o Brasil enterrou a
ditadura e inaugurou um governo civil de transição para convocar a Constituinte
e a eleição direta para a Presidência. À morte no hospital, Tancredo Neves,
eleito pelo Colégio Eleitoral, não pôde assumir. Tomou posse o sucessor legal,
vice-presidente também eleito, José Sarney. Chávez encerrou seu terceiro mandato
e ganhou o quarto consecutivo. Na Venezuela, o vice é nomeado pelo presidente,
como se fosse um ministro. O presidente não assumiu e Nicolás Maduro não está na
linha de sucessão, mas o Judiciário avalizou o autogolpe prorrogando o mandato
de Chávez, extinto em 10 de janeiro.
Nas democracias
de verdade, a duração do mandato importa mais do que quem o ocupe. E, como diria
Abelardo Barbosa, o Chacrinha, “o mandato acaba quando termina”. O anterior de
Chávez acabou e o seguinte se iniciaria há cinco dias. Sem posse, não começou.
Logo, deu-se o autogolpe. O resto é lorota.
Jornalista,
poeta e escritor
(Publicado na
Pág 2A do Estado de S. Paulo de quarta-feira 16 de janeiro de
2012)
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