Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo
Um dia meu avô me apresentou a sua amante. Chamava-se Celeste e tinha o cabelo muito ruivo, desgrenhado, olhos muito azuis que me fitaram com um afeto risonho onde havia uma ponta de tristeza. Ela me beijou trêmula e carente como uma avó postiça. Eu era o único membro conhecido de uma família que a excluíra da vida. Ao mesmo tempo, ela se sentia vítima e traidora, o drama das amantes da época. Daí a melancolia que reprimia com seu sorriso. D. Celeste. "É de uma importante família de militares", dizia meu avô com secreto orgulho da namorada. "Que gracinha... você é xará do seu avô..." Eu não sabia o que era 'xará' - tinha uns 7 anos, no máximo. Meu avô não disse nada, mas eu via que entre os dois havia mais do que a amizade de colegas. Havia uma intimidade disfarçada, toques rápidos nos braços, carícias que paravam no meio, um cuidado suspeitoso comigo, tão pequeno para os segredos da vida.
Foi a primeira vez que eu a vi. A segunda vez foi muitos anos depois.
Minha mãe e minha tia sabiam do caso. Ouvia-as falando 'por alto' ao telefone, comentando o 'crime' de meu avô, referindo-se em código a ela, como 'a sujeitinha, a tal'. Minha avó, creio, não sabia de nada. O estranho é que eu via tudo, na lucidez infantil diante do óbvio. E era mais intrigante ainda o fato de que ela parecia com minha avó Zulmira, muito branca, olhos claros e cabelo desgrenhado, só que azul. Isso. Minha avó tinha o cabelo azul, pintado para esconder as madeixas brancas. Minha pobre avozinha sofria calada, entretida com suas plantinhas que ela cuidava com amor - "minhas bromélias, meus "dentes-de-leão", "minhas margaridas". No fundo de suas prováveis suspeitas havia o consolo de se sentir casada, com família, para a qual D. Celeste não existia.
Minha avó era culta, falava francês bem ("Cachez votre bonheur!", me dizia ela que, sem dúvida, escondia a sua "malheur".)
Um de seus orgulhos era ter cuidado do Manuel Bandeira numa fazenda onde o poeta tentava a cura da tuberculose: "Despejei muito balde de hemoptises, coitado"...
As amantes de antigamente eram quase partes da família, partes ocultas, agregadas ao sistema sagrado do lar, quase um 'serviço social'.
D. Celeste me deu um beijo longo, quando saímos da repartição. Meu avô deixou-me dar uma tragada em seu cigarro e falou para si mesmo: "Me ajudou muito essa 'criatura'..." Achei a palavra estranha - carinhosa e cruel. D. Celeste. E esse amor não foi um casinho de colegas não; durou mais de 30 anos - bodas tristes, cinzentas, bodas de nada.
Os anos passaram. Eu levava meu avô, já gagá, ao Jockey Club para conversar com os tratadores seus amigos: "A Garboza corre hoje, Ernani?" Não, seu Arnaldo, ela já morreu. "Tudo se misturava - passado e presente eram iguais."
Vovô já vivia numa cadeira de balanço que ele impulsionava com muita rapidez, quase violência, como se quisesse voar pela janela afora.
Havia um grande ódio que o movia: (pasmem) era um ministro, Ary Franco, hoje presídio no Rio. Ary Franco era do STF quando vetou algum pleito dos funcionários aposentados... Isso prejudicou meu avô e seus amigos para quem telefonava sem parar: "Esse demônio diminuiu nossa pensão!" Esse ódio era seu único assunto no fim da vida, quando contava compulsivamente as notas na carteira para ver se fora roubado.
Um dia, sua cadeira parou de balançar e ele ficou calado, imóvel repetindo uma frase baixinho. Era um endereço. Ele 'conversava' com alguém: "Rua Ana Nery, casa tal, número tal.. eu sei, você quer que eu vá aí. Mas, e minha família, Celeste, que que eu faço...?" Minha avó andava pela sala ouvindo aquela ladainha sem estranheza, arrumando seus bibelôs de faiança, uns anjinhos de asas, um elefantinho.
Por amor, por curiosidade perversa, sei lá, um dia resolvi levá-lo ao tal endereço.
Os cabelos dela agora eram brancos. Não se erguiam como a antiga coroa ruiva. Esfarripados, caídos, brancos. D. Celeste estava numa mesinha da varanda recortando revistas com uma tesoura, guardando os recortes numa caixa... Ela nem estranhou a chegada de vovô. Parecia continuar uma conversa antiga, interrompida há pouco.
"Veja só... Lembra do crime do Sacopã? A Marina era amante do Afranio e o tenente Bandeira matou ele... Agora está na caixinha."
Recortava notícias e olhava para meu avô com um sorriso orgulhoso.
"Agora guardo tudo - desde quando eu nasci. Tudo. Olha a manchete: 'Silvia Serafim, a meretriz assassina'. Ela matou o dono do jornal... Tudo que aconteceu na minha vida está aqui. Está quase cheia, olha... Esse menino cresceu hein? Seu xará!"
"E esse Ary Franco que cortou nossa pensão?... Aqui se faz, aqui se paga, desgraçado!...
"Olha esta capa do O Cruzeiro. É a Dana de Teffé, linda. O advogado matou ela! Aqui, ó, a chegada dos pracinhas... Olha, a Martha Rocha coitada... perdeu..."
Ficaram um tempo em silêncio... Meu avô sentou ao seu lado, olhar perdido no céu. E ela, dobrando jornal.
Eu via os corpos que se amaram, se enroscaram, eu imaginava braços e pernas enlaçados, a cabeleira ruiva entre seus dedos, os seios chupados, os gritos de amor, o suor nos corpos, agora tão magros e encanecidos.
"Olha nós dois aqui, em Caxambu." Ele pegou a foto e seus dedos se tocaram por um instante.
"É..."
"Tinha tango no hotel, lembra? Eu dançava bem..."
"É..."
Outra pausa. Vovô se ergueu, com minha ajuda...
"Já vou indo..."
D. Celeste nem olhou, entretida nos recortes: "Olha aqui, a Greta Garbo. Vi sua filha uma vez, na rua. Ela é a cara da Greta Garbo..."
Meu avô e eu saímos lentamente pelo portãozinho. D. Celeste ainda avisou: "Não volta tarde..."
Pouco tempo depois, minha avó morreu. O cabelo azul espalhado no travesseiro.
No velório, meu avô calado num canto. Falou da gripe espanhola. "Em 1918, morreu gente como mosca. Eu escapei."
Ele já não entendia nada, mas seus olhos brilhavam como janelas para um passado remoto. Toda sua vida passava em alta velocidade. Fitou-me com um sorriso divertido e amargo e disse, como uma sentença: "Puta que pariu, seu Arnaldinho..."
Ali estava o resumo de sua vida.
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