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terça-feira, 20 de novembro de 2012

O lado bom da tragédia



ARNALDO JABOR 

Às vezes, sonho com um supercrash do capitalismo. Maior do que o atual. Em dias de ódio e tédio com o mundo fora dos eixos, desejo o mal: "Que quebre tudo logo, vamos recomeçar do zero!" Sonho, às vezes, como um bolchevista louco ou um homem-bomba querendo a morte dos cães infiéis - que somos nós. Um 'supercrash' seria bom. Dar-nos-ia uma consciência mais humilde de limites. Em meu delírio, chego a desejar que alguma catástrofe aconteça, para nos despertar desta suja esperança, desta sórdida alegria obrigatória que nos impingem.
O crash traria uma nova era; terrível ou não, alguma verdade surgiria… Como chamá-la? A pós-pós-modernidade? O pós-apocalipse? A "desglobalização"? A única coisa que não será "pós" é a burguesia, claro. Não há "pós-burguesia".
O supercrash seria bom para fracassados, pois estão desculpados, mas seria ruim para catastrofistas - que ficariam sem anátemas e protestos nos bares. Uma crise é boa para o contato com o absurdo. Nesse sentido, uma crise radical seria 'filosófica', porque o mal ficaria banalizado e o bem, um luxo ridículo, um hobby.
Ficaríamos mais espiritualizados com uma supercrise. Num primeiro momento, o horror, bolsas caindo, grana sumindo. Depois, a paz do inevitável, a calma da desgraça assumida - vejam o rosto pacífico dos famintos do Sudão. A fome traz uma paz desesperançada. Uma super-recessão muito maior que em 29 pode mostrar que a voracidade consumista não é a única maneira de viver. Seríamos mais magros e mais frugais; ficaríamos mais elegantes com um crash. 'Crash chic'.
Um supercrash apaga o sorriso dos colunáveis nas revistas. Um crash fecha a Caras e provoca uma onda de suicídios de milionários e instilaria humildade nas almas yuppies. Acabariam suspensórios floridos e gravatas de pintinhas. Das salas ricas, sumiriam elefantes de prata, lustres de cristal e tapetes de zebra.
Voltariam os hippies, as drogas lisérgicas, o artesanato de couro, a poesia, a arte, a lenta reflexão, "slow life". Toda crise é uma renascença. Haveria uma estética do crash. O crash criaria escolas filosóficas: o 'pirronismo' absoluto, um neoniilismo pragmático e a escatologia escatológica: "a merda está no fim da história", uma espécie de Hegel de marcha à ré.
Os intelectuais encheriam a cara nos bares, cheios de esperançoso pessimismo. Os bondosos de carteirinha, os cafetões da miséria, santos oportunistas, ficariam todos em pânico: "Se não houver um mal claro, como seremos bons?"
O mundo se 'balcanizaria' em ilhas culturais e psicológicas; o mundo se espalharia em esponjas, em vazios, em avessos, em 'buracos brancos' que se alargam enquanto o tecido da sociedade se esgarça. Não seriam 'células de resistência', mas 'buracos de desistência'.
Os filmes americanos ficarão felizes e haverá musicais para nos alegrar, como no tempo do crash de 29 . Fred Astaire vai dançar com Ginger Rogers de novo. O crash acaba com os filmes de grande produção. O crash vai nos livrar dos grandes shows de rock, das milionárias bandas revoltadas, dos best-sellers de autoajuda (pois não haverá salvação possível), das supercervejarias, dos canecões. Diminuiria muito nossa ansiedade patológica e teríamos a depressão, que é muito melhor porque, ao menos, descansamos caídos na cama.
Com a nova guerra fria entre russos e americanos e, talvez, uma guerra quente no Oriente Médio, teríamos a restauração da beleza da morte e não mais sua banalização pelos videogames letais. Uma 'supercrise' traria um novo sabor de verdade a esta ópera-bufa que vivemos. Acaba o pastelão e começa a tragédia real. O crash será um 'thrill' para nossas vidas. A paz é chata; parece filme iraniano. A guerra é que é legal, como um filme de ação. O crash também revitalizaria o inútil, a importância do nada, a ausência de urgências, uma saudável tristeza vil. Acabaria com a folga arrogante do capitalismo financeiro, com seus imensos casinos do Mal.
Um crash pode nos dar o frisson de sermos vítimas, a luz negra excitante da paixão. Pode acabar com este bom senso insuportável que nos rege. Acabarão os países emergentes, pois todos seremos reemergentes. Sem consumo, haverá um grande estímulo para o sexo... já que não teremos nada a fazer. O crash vai parir 'babycrashers'. E também vai justificar broxadas: "minha filha... desculpe... é o crash..." O crash vai acabar com o grande movimento em aeroportos e diminuirá sensivelmente o número de barrigudos falando alto em celulares. O crash fecha Miami. Vão acabar palavras como 'globalização', livre mercado, competitividade, desregulamentação, qualidade total, inovação. Como se diz hoje, o mundo terá um "downsizing".
O crash pode vir a ser retrô, delicioso - voltaremos aos anos 50, de onde nunca saímos, na verdade. Ficaríamos livres da euforia gratuita e teríamos um sadio desalento. Acabaria o vício do passadismo rancoroso, com a desistência da esperança regressista, acabaria a nostalgia de torturas, heranças malditas, ossadas do Araguaia. Acabaria um sonho de futuro. Só teríamos o presente incessante.
O crash vai ser bom para o Brasil conhecer o caos. Há anos que falamos nele sem saboreá-lo, se bem que não temos competência nem para o caos, que é mais 'anglo-saxônico'. Teremos o pântano, o brejo (para a onde a vaca vai), coisa mais 'nossa', mais 'saudades do matão' com sapos coaxando. O pântano é mais Brasil. O único problema do crash é que ele pode revitalizar os fascismos. E isso, naturalmente, poderá causar uma guerra total, na qual morreremos todos, derretidos, adubando o solo para novas espécies. Mas, já que o espetáculo da história humana foi esse vexame milenar em busca de poder e de esperanças vãs, também isso pode ser bom. O crash seria bom para acabar conosco, esta raça daninha que atrapalhou o livre curso da natureza. Logo, não se preocupe.

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