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quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Os réus morais do mensalão




José Nêumanne


Assim como retiram assinaturas de projetos, líderes governistas renegam nota anti-STF

Há dúvidas se os efeitos do julgamento do escândalo que se tornou conhecido como mensalão – e agora se vê que por motivo justo, pois havia mesmo parlamentares e dirigentes partidários recebendo propinas mensais – ajudarão a sanear a política brasileira de seus péssimos costumes ou se ele será uma exceção. Não no sentido de servir a interesses discricionários, como definiu o insigne professor Wanderley Guilherme dos Santos, presidente da Casa de Rui Barbosa, até segunda ordem um órgão do governo, ao Valor Econômico, mas significando algo anômalo, fora do comum e que não produzirá efeitos. Uma coisa, porém, é certa – e, até agora, isso já o torna histórico: trata-se de uma tomografia que expõe sem piedade as vísceras apodrecidas da República. E é capaz de revelar detalhes da promiscuidade e, como já se pode constatar, também da desfaçatez e da pusilanimidade sem pudor da elite que manda e desmanda no País.

O imenso pântano de cinismo e caradura em que essa elite chafurda já foi descrito em detalhes no manual da corrupção na administração pública nacional que é o livro Nervos de Aço (Topbooks, Rio de Janeiro, 2007), do delator do esquema de compra de votos das bancadas governistas com dinheiro público, Roberto Jefferson, presidente nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Mas como tudo o que expõe sesquipedais rabos de palha, a publicação caiu em ostracismo. Agora, não mais: a malversação do dinheiro público tem sido descrita em capítulos, lidos nas tardes de segunda, quarta e quinta-feiras pelo relator do processo no Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa. O relato, feito com lógica de orgulhar Aristóteles e lido com dicção perfeita e no tom certo, é seguido com interesse pela sociedade graças à oportuníssima exibição ao vivo em canais por assinatura na televisão. E também é reportado pelos meios de comunicação, para desespero de todos quantos pensavam que seriam capazes de mandar o velho Abraham Lincoln às favas, pois conseguiriam enganar todos durante todo o tempo que lhes conviesse.

O trabalho minucioso e competente do ministro trouxe à luz a forma como foi aparelhada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no poder uma instituição secular e respeitável como o Banco do Brasil (BB), fundado no começo do século 19 pelo monarca português e que virou símbolo da passagem de nossa condição colonial à de sede da Corte. E narra o que no livro de Jefferson pode até ser considerado retaliação de perdedor: a entrega de envelopes (e até malotes transportados em carros-fortes de bancos) com gorjeta usada para convencer parlamentares cúpidos e chefes partidários venais a dizerem amém na Câmara e no Senado às ordens emanadas do que passou a ser todo-poderoso Executivo.

Atrás do propinoduto de que Marcos Valério foi só “operador”, no dizer do delator e confirmado pelo relator, foi engendrado o verdadeiro ovo da serpente, o golpe sub-reptício com o objetivo sórdido de instalar uma ditadura dos políticos profissionais sobre os cidadãos comuns. O julgamento do mensalão decidirá o destino de gestores acusados de desviar recursos públicos para aplicarem em seus projetos partidários e nas próprias fortunas pessoais. E terá o condão de decidir de vez que em nosso frágil, mas irreversível, Estado Democrático de Direito todos são de fato iguais perante a lei. A tentativa de reduzir crimes maiores, como corrupção ativa e passiva, peculato e lavagem de dinheiro, a um delito menor, o caixa 2 de campanha (“recursos não contabilizados”, no eufemismo da vez), partiu do pressuposto de que eles podem fazer o que não nos é permitido. A contabilidade paralela da Daslu levou a empresária Eliane Tranchesi à prisão. Não a de Delúbio Soares. “Pois, afinal, é praticada por todos os partidos. Se os outros podem, por que o PT não?”, questionou o chefão geral, Luiz Inácio Lula da Silva, como acaba de fazê-lo o único acusado do esquema que se beneficiou da delação premiada, o chef Silvio Pereira.

A cúpula petista no poder republicano não tinha dúvidas de que a teoria do padim transmitida a seus causídicos milionários seria aceita facilmente no plenário do Supremo. Afinal, oito dos 11 ministros foram nomeados por um presidente do partido e teriam de ser-lhe gratos. Se o BB foi aparelhado, se a Casa Ruy Barbosa foi aparelhada, se a Petrobrás foi aparelhada, por que não o STF? A verdadeira elite dirigente esqueceu-se de prestar atenção em Chapolim e não contou com a astúcia dos ministros que, imunes à demissão, tratam de evitar que a gratidão emporcalhe sua biografia. O general De Gaulle disse muito bem que a ingratidão é a maior virtude de um estadista.

E é assim que o velho conceito da igualdade de todos perante a lei está sendo garantido pelo STF e os políticos viciados em caronas em jatinhos (quando não dispõem do próprio avião) e nas festas promíscuas pagas pelos sanguessugas do Estado exercem o direito que os galhofeiros verteram para o latim: jus sperneandi. O direito de espernear é a única explicação para a carta dita de apoio a Lula, articulada pelo presidente nacional do PT, Rui Falcão, e assinada por seis partidos da chamada “base governista”, comparando a atuação do STF ao movimento que levou Getúlio Vargas em 1954 ao suicídio e à derrubada de João Goulart em 1964.

O presidente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), Valdir Raupp, disse que a assinou “constrangido”. Terá o Falcão do PT recorrido a um revólver para convencê-lo? Parlamentares do Partido Democrático Trabalhista (PDT) desautorizaram seu líder, Carlos Lupi. Por que, então, não o depõem da presidência? Habituados a retirar assinaturas de projetos, ao terem atendidos seus pleitos pelo Executivo, devem calcular a inteligência alheia pelo conceito que têm da própria honra. Ao assinarem o documento tragicômico e tentarem fugir da responsabilidade por isso, incluem-se, e também Lula, na categoria de “réus morais” do mensalão. Pois não é isso mesmo que eles são?

Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde

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