Roberto DaMatta
A troca, data vênia, das fraldas, para ficarmos com o velho Eça, tem suas etiquetas. No nosso caso, ela promove na TV um desfile hierarquizado por tempo de exposição dos candidatos; um tempo subordinado ao poder do partido de cada aspirante. Os bem aquinhoados partidariamente têm mais tempo. Os sem-tempo tentam definir em segundos uma vida e um programa.
É quando eu me dou conta do absurdo dessa competição eleitoral dando a muitos alguns segundos, enquanto poucos podem desempenhar o papel de estrelas, o que, aliás, fazem com brilho estupendo. O modelo encenado é o de um baralho de messias. Em cada carta surge um algarismo, um naipe e um santo. Todos, porém, dotados da capacidade de prometer doses de felicidade que vão melhorar o nosso mundo e, naturalmente, o deles. O programa deixa ver como nossa concepção de poder é feita com altares e promessas: com relações de simpatia mais do que laços ideológicos e competências. Salta aos olhos a linguagem do compadrio e do parentesco como um atestado da habilidade dos candidatos.
Não estou me referindo a apoio ou simpatia política, que é uma prerrogativa da democracia eleitoral. Falo da linguagem pela qual esse apoio se molda - na maioria dos casos em termos de relacionamentos pessoais, por contraste a programas partidários. Nos anos de chumbo, quando havia censura e as eleições eram proibidas, tínhamos programas extremadamente partidários. Agora que gozamos do direito à liberdade, fechamos com o apoio pessoal fundado mais na diferenciação do candidato pelo parentesco do que pela correlação cívica ou política.
Salta aos olhos a contradição configurada pelo retorno às velhas distinções, como diria Pierre Bourdieu, pelo compadrio e pelo parentesco, justamente num ritual no qual o que deveria valer seria o indivíduo em suas competências individuais e não pelo seu relacionamento com quem diz que o conhece. Nesse rito individualista e moderno de mudança, voltamos aos laços perpétuos e grupais de família e parentesco.
Curioso como reescrevemos a república pelos velhos textos aristocráticos. Claro que existem correligionários, mas é preciso distinguir alianças entre cidadãos livres, caso não se queira correr o risco de heranças malditas, como foi o caso - fiquemos nos Estados Unidos - do governo Bush.
Um dos riscos de toda república é ver legitimada a receita monárquica que ela própria ultrapassou por meio de um retorno dos laços de sangue que reinventam velhas dinastias.
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As famílias de candidatos me levaram a pensar no meu amado e saudoso irmão Renato. Relembrei de uma viagem ao povo apinayé que fizemos quando ele tentou trocar a vida de economista pela de antropólogo, a profissão que seu irmão mais velho ainda tenta aprender. Corria os anos 70. Viajamos 30 horas de Brasília a Tocantinópolis, no Tocantins, num velho ônibus, e chegamos ao único hotel local, o da dona Raimundinha, coberto da poeira vermelha que fazia parte do batismo de quem se aventurava a percorrer o Brasil antes dos sertões virarem grotões eleitorais eletrônicos. Eu me lembro bem das revistas policiais em Brasília e, muito mais, do maravilhoso banho que tomamos, bem como do delicioso prato de feijão com arroz e ovo frito comido pelas 11 da noite, preparado pela dona do estabelecimento, a própria dona Raimundinha cuja vida, por si só, daria - ela mesma dizia - um romance.
Na aldeia fomos recebidos pelos apinayé os quais, para surpresa do irmão, realizaram uma comovente saudação lacrimosa. Chora-se na chegada, jamais nas partidas. Eu me enfiei no meu velho e malfeito estudo da organização social; Renato, interessado em descobrir o segredo do desenvolvimento econômico, aproveitou para investigar os elos comerciais numa aldeia onde protoempresários e consumidores iniciavam suas atividades.
Logo meu irmão chegou a um resultado categórico. Havia na aldeia uma venda que pertencia a um indígena que era a encarnação do empresário clássico de Joseph Schumpeter. Ele vendia tudo o que os apinayé precisavam: cartuchos, sal, açúcar, fósforo, querosene para lamparinas, bolachas, azeite, velas e cachaça. Uma estante bisonha mostrava aos compradores o sortimento da venda e revelava a iniciativa do comerciante. Mas em vez desse empresário promover um novo ciclo econômico, ele trazia de volta as velhas relações de família e parentesco, cuja norma principal era dar sem nada pedir. Assim, quando alguém queria "comprar" alguma coisa, mandava um menino que não entrava na venda como um consumidor anônimo e impessoal, portador de um dinheiro que fechava as trocas, mas como um "sobrinho", um "neto" ou um "irmão" do dono do negócio que, ao fim e ao cabo de nosso tempo de campo, estava para falir, pois as obrigações do parentesco (baseadas na reciprocidade) englobavam as do comerciante (fundadas no lucro que demanda distanciamento e impessoalidade).
Para se ter mercado (seja de bens, serviços ou de cargos públicos), é preciso desmanchar pela crítica os papéis sociais estabelecidos. E, conforme sabemos, uma coisa não sufoca a outra de modo automático, como querem os crentes, os ingênuos e os malandros. Pelo contrário, quando mais impessoalidade, mais os termos de relacionamento tradicionais eram invocados. Não é fácil trocar fraldas. Parece familiar, não?
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