José Nêumanne
Caberá ao
Supremo julgar o futuro da impunidade de nossos políticos na
democracia
O levantamento
de peritos oficiais da Polícia Federal (PF), do Ministério Público Federal (MPF)
e do Tribunal de Contas da União (TCU), após ouvirem 600 testemunhas e
produzirem um relatório de 50 mil páginas, calcula em R$ 101,6 milhões o desvio
de dinheiro, público ou privado, de que serão acusados os 38 réus do escândalo
chamado de “mensalão”. Terá sido o maior episódio de corrupção de políticos e
agentes públicos de todos os tempos? Vai saber! Por mais altos que sejam os
números que dizem respeito aos “propinodutos” em todos os escalões da burocracia
estatal, eles sempre podem parecer modestos após surgir o próximo à luz do
noticiário. Mas é provável que tenha sido realmente o mais “atrevido” de todos,
definição dada pelo procurador-geral da República, Roberto
Gurgel.
Atrevimento
incomum foi o do presidente nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),
Roberto Jefferson, ao delatar a existência de um esquema de compra de votos em
legendas governistas, que chamou indevidamente de “mensalão”, referindo-se ao
que de menos relevante havia nele, a periodicidade. Mas atrevimento por
atrevimento, truco! Os antigos aliados que ele delatou o superaram nesse
quesito. Principalmente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que o
delator tentou poupar, mas agora, se é que se pode confiar em escaramuças
retóricas de advogados em véspera de júri, pretende transferir de José Dirceu
para ele o papel de mandante do delito, se delito houve. Ou, como preferiu o
procurador que antecedeu o atual, Antonio Fernando de Souza, e o denunciou, de
chefe de uma rede de peculato e corrupção ativa e passiva.
Na Presidência,
Lula foi a mais ambulante das metamorfoses citadas no sucesso de Raul Seixas,
que ele adotou como lema. Nunca antes na História deste país um governante se
mostrou tão pouco biruta ao se comportar como uma biruta ao sabor do vento que
soprava na ocasião para dar a resposta que considerava mais conveniente para
evitar que algum oposicionista ousasse tirar-lhe o
escalpo.
Quando o
escândalo eclodiu, Sua Excelência pôs a carapuça habitual do macaquinho da piada
que nada sabe porque nada viu, nada ouviu e nada falou a respeito. Não faltaram
testemunhas de que ele foi informado, entre elas o governador de Goiás, Marconi
Perillo (PSDB), que terminou caindo na malha fina da PF em outro episódio de
nossa grotesca República, a “rede criminosa” do bicheiro Carlinhos Cachoeira e
da Delta. Em Paris, comodamente sentado, o então presidente deu um depoimento
disfarçado de entrevista ao Fantástico e disse que seu Partido dos
Trabalhadores (PT) recorreu ao estratagema comum do caixa 2 eleitoral.
Eliane Tranchesi não podia fazê-lo, mas petista em campanha pode,
é?
Lula também se
disse traído e pediu perdão, como se isso fosse suficiente para extinguir delito
e pena. E, depois, adotou a estratégia de assumir o crime menor para livrar os
acusados da pena maior. Se o Supremo Tribunal Federal (STF) aceitar a tese,
criará a jurisprudência que punirá o assaltante que matar o assaltado apenas
pelo roubo. Sem contar o cinismo de imaginar que, numa adaptação corporativista
do velho axioma de Artur Bernardes – “aos amigos, tudo; aos inimigos, o rigor da
lei” –, a carteirinha de um partido político da base governista basta para
liberar o cidadão do incômodo de cumprir as leis.
A desfaçatez do
argumento, contudo, não sobreviveu ao tempo e ao exercício do poder. Reeleito
por soberana decisão popular, tendo governado mais quatro anos no topo de uma
popularidade crescente e contra uma oposição indigente, o ex-sindicalista deu-se
ao luxo de trocar de falácia. Para que admitir o crime menor se a caradura,
associada à boa-fé do povo, lhe permite a permanente presunção da inocência? Que
caixa 2, que nada! O “mensalão” é fictício, mera intriga da oposição.
Pois é notório que a PF, o MPF e o TCU são instituições comandadas por inimigos
do PT e do governo. E não são mesmo?
Partindo do
princípio público e notório de que o STF é um reduto de ferozes opositores, não
convém confiar que esses sabotadores da República socialista, que só admitiram
manter Cesare Battisti no País para disfarçar, aceitem a tese. Foi aí que Lula,
em pessoa, saiu a campo para pregar a inconveniência do julgamento de um crime
em ano de eleições municipais, cuja relevância é capital para a sobrevivência de
nosso frágil Estado Democrático de Direito...
O presidente
nacional do PT, Rui Falcão, divulgou vídeo à militância negando a existência dos
fatos descritos no relatório dos peritos da PF, do MPF e do TCU. Enquanto isso,
os advogados do partido anunciaram que pedirão ao Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) a proibição de eventuais alusões ao julgamento do STF nas campanhas
municipais de seus filiados. Ou seja, a volta da Lei Falcão, da ditadura, com a
qual o poder da época substituiu o debate político pelas fotografias e
biografias dos candidatos a eleições, tentando impedir quaisquer exposições de
ideias. Caso aceite a tese, a Justiça Eleitoral não precisará nem trocar a
denominação, pois a interferência do falcão Armando, ministro da Justiça dos
militares, virará a intervenção do falcão Rui, defensor perpétuo das causas dos
militantes.
A corregedora do
Conselho Nacional da Justiça, Eliana Calmon, em que pesem suas boas intenções,
engana-se ao alertar que de amanhã em diante o STF se submeterá a julgamento da
opinião pública. Não há como julgar a instância máxima do Judiciário: essa é uma
característica pétrea da democracia, como esta tem de ser. Mas o STF
contribuirá, sim, e muito, para aprimorar nossa democracia, fragilizada pelo
atrevimento permanente de seus mais amados rebentos, se não contribuir para a
impunidade ampla, geral e irrestrita, pela qual militam os que pregam o
adiamento sine die do julgamento ou o perdão incondicional para os companheiros
acusados. Afinal, nem pedir desculpas dispensa cumprimento de pena nem plena
defesa é sinônimo de acusação nula. Ou não?
Jornalista,
escritor e editorialista do Jornal da Tarde
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