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sábado, 4 de agosto de 2012

Audálio Dantas, 80 anos - No início do fim da ditadura



José Nêumanne


Sua vitória no Sindicato dos Jornalistas foi um fator fundamental para que a entidade reagisse à morte de Vlado Herzog


Em 8 de julho, Audálio Dantas fez 80 anos. Em 27 de junho, Vladimir Herzog teria completado 75 se não tivesse sido torturado até a morte nos porões da repressão, em 25 de outubro de 1975. Do encontro da biografia dos dois – o primeiro nascido em Tanque d’Arca, no sertão alagoano, e o outro, em Osijek, na Croácia, parte do Reino da Iugoslávia quando Vlado (no Brasil, o nome foi adaptado para o português) nasceu – ocorreu no momento em que a ditadura militar desabou sobre os próprios pés de barro. Entre o croata e o sertanejo criou-se, então, um vínculo histórico que foi além do fato de ambos terem feito brilhante carreira jornalística. Herzog foi o mártir cujo sangue derramado batizou a volta da democracia. Audálio, o homem certo no lugar certo para indicar o caminho a ser seguido nesse rumo.

Parte da trajetória de Audálio, como se pode ler no texto acima, consta do livro Tempo de Reportagem, coletânea de seus melhores momentos de repórter. O maior destaque, claro, é a revelação em reportagem para a Folha de S.Paulo, em 1963, da catadora de papel Carolina de Jesus na Favela do Canindé, lançada para a glória literária com o sucesso de trechos de seu diário editados por ele no livro Quarto de Despejo. Foram coletadas reportagens de Audálio publicadas pela revista O Cruzeiro – caso da viagem, em 1963, a Canudos, na Bahia, cenário do clássico da literatura em português Os Sertões, de Euclides da Cunha. E registros selecionados do que ele escreveu, de 1970 a 1972, na revista Realidade – da saga de catadores de caranguejo no mangue à rotina dos pescadores do Velho Chico.

Nada disso pode, contudo, ser comparado ao passo que deu após ser escolhido para encabeçar a chapa para substituir a diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, que, sob a presidência de Adriano Campanhole, se mostrava pouco disposta a enfrentar o regime militar no começo dos anos 1970. Sua vitória foi fundamental para que a entidade reagisse com firmeza e serenidade à violência cometida contra um colega que nada tinha que ver com a guerra suja.

Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, Herzog foi teatrólogo, professor da Faculdade de Comunicação da própria USP e fez carreira de destaque como jornalista, tendo trabalhado em vários veículos, entre os quais este O Estado de S. Paulo e a BBC de Londres, até ser nomeado diretor de jornalismo da TV Cultura. Em 24 de outubro de 1975, foi convocado por agentes do Exército a dar esclarecimentos no DOI-Codi da Rua Tutoia. Apresentou-se no dia seguinte e de lá só saiu morto – sua foto, mostrando-o como que enforcado no próprio cinto, ganhou notoriedade.

Herzog se tornou assim a primeira vítima de morte dos órgãos encarregados do combate à guerrilha dos grupos armados de extrema esquerda sem ter nenhuma ligação com tais grupos. Até então, a tortura em alta escala praticada pelo regime atingia esses combatentes. Herzog foi acusado de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), que era contra a luta armada.

Sua morte pode ter resultado da sanha anticomunista dos agentes do Estado que atuavam no DOI-Codi de São Paulo, mas é mais provável que tenha sido usada pela linha dura como argumento contra o movimento da ala branda que promovia a abertura ampla e gradual no governo Geisel. O então governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, era o alvo preferencial dos duros, que tentaram aproveitar-se do fato de ele ter nomeado o empresário e intelectual liberal José Mindlin secretário da Cultura e este, por sua vez, ter levado Herzog, e com ele um “ninho de comunistas”, para uma emissora de televisão pública (para os militares, sinônimo de oficial).

A declaração explícita de guerra da linha dura ao núcleo brando do regime revoltou a consciência cívica nacional, que então ficou sabendo que a violência do Estado não prendia, torturava e matava apenas os revolucionários que queriam tomar o poder pelas armas para instalar uma ditadura de esquerda. Para que isso ocorresse foi fundamental a ação conjunta de três homens: o rabino Henri Sobel, que se recusou a sepultar Herzog entre suicidas no cemitério judeu; o arcebispo dom Paulo Evaristo, cardeal Arns, que desafiou o regime convocando uma celebração ecumênica que lotou a Sé; e Audálio Dantas. O presidente do Sindicato dos Jornalistas teve o tirocínio e a coragem de levar a opinião pública brasileira de forma firme, mas serena, à consciência de que a luta contra a ditadura era de todos e não tinha acabado com o triunfo do Estado contra a extrema esquerda dizimada. Foi o começo do fim do arbítrio dividido.

Em janeiro de 1976, o metalúrgico Manuel Fiel Filho, militante católico de esquerda, foi morto no mesmo DOI-Codi em que Herzog foi pendurado pelo cinto, o comandante do 2.º Exército foi exonerado com desonra e o colega de ofício da vítima Luiz Inácio Lula da Silva liderou greves no ABC. E o regime começou a ruir, sufocado pelo cinto de Herzog no pescoço, após ter feito a foice e o martelo sucumbirem a rajadas de metralhadora.

Audálio Dantas foi um dos artífices dessa derrocada.



José Nêumanne é jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde.

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