José Nêumanne
Sua
vitória no Sindicato dos Jornalistas foi um fator fundamental para que a
entidade reagisse à morte de Vlado Herzog
Em
8 de julho, Audálio Dantas fez 80 anos. Em 27 de junho, Vladimir Herzog teria
completado 75 se não tivesse sido torturado até a morte nos porões da repressão,
em 25 de outubro de 1975. Do encontro da biografia dos dois – o primeiro nascido
em Tanque d’Arca, no sertão alagoano, e o outro, em Osijek, na Croácia, parte do
Reino da Iugoslávia quando Vlado (no Brasil, o nome foi adaptado para o
português) nasceu – ocorreu no momento em que a ditadura militar desabou sobre
os próprios pés de barro. Entre o croata e o sertanejo criou-se, então, um
vínculo histórico que foi além do fato de ambos terem feito brilhante carreira
jornalística. Herzog foi o mártir cujo sangue derramado batizou a volta da
democracia. Audálio, o homem certo no lugar certo para indicar o caminho a ser
seguido nesse rumo.
Parte
da trajetória de Audálio, como se pode ler no texto acima, consta do livro Tempo
de Reportagem, coletânea de seus melhores momentos de repórter. O maior
destaque, claro, é a revelação em reportagem para a Folha de S.Paulo, em 1963,
da catadora de papel Carolina de Jesus na Favela do Canindé, lançada para a
glória literária com o sucesso de trechos de seu diário editados por ele no
livro Quarto de Despejo. Foram coletadas reportagens de Audálio publicadas pela
revista O Cruzeiro – caso da viagem, em 1963, a Canudos, na Bahia, cenário do
clássico da literatura em português Os Sertões, de Euclides da Cunha. E
registros selecionados do que ele escreveu, de 1970 a 1972, na revista Realidade
– da saga de catadores de caranguejo no mangue à rotina dos pescadores do Velho
Chico.
Nada
disso pode, contudo, ser comparado ao passo que deu após ser escolhido para
encabeçar a chapa para substituir a diretoria do Sindicato dos Jornalistas
Profissionais do Estado de São Paulo, que, sob a presidência de Adriano
Campanhole, se mostrava pouco disposta a enfrentar o regime militar no começo
dos anos 1970. Sua vitória foi fundamental para que a entidade reagisse com
firmeza e serenidade à violência cometida contra um colega que nada tinha que
ver com a guerra suja.
Formado
em Filosofia pela Universidade de São Paulo, Herzog foi teatrólogo, professor da
Faculdade de Comunicação da própria USP e fez carreira de destaque como
jornalista, tendo trabalhado em vários veículos, entre os quais este O Estado de
S. Paulo e a BBC de Londres, até ser nomeado diretor de jornalismo da TV
Cultura. Em 24 de outubro de 1975, foi convocado por agentes do Exército a dar
esclarecimentos no DOI-Codi da Rua Tutoia. Apresentou-se no dia seguinte e de lá
só saiu morto – sua foto, mostrando-o como que enforcado no próprio cinto,
ganhou notoriedade.
Herzog
se tornou assim a primeira vítima de morte dos órgãos encarregados do combate à
guerrilha dos grupos armados de extrema esquerda sem ter nenhuma ligação com
tais grupos. Até então, a tortura em alta escala praticada pelo regime atingia
esses combatentes. Herzog foi acusado de pertencer ao Partido Comunista
Brasileiro (PCB), que era contra a luta armada.
Sua
morte pode ter resultado da sanha anticomunista dos agentes do Estado que
atuavam no DOI-Codi de São Paulo, mas é mais provável que tenha sido usada pela
linha dura como argumento contra o movimento da ala branda que promovia a
abertura ampla e gradual no governo Geisel. O então governador de São Paulo,
Paulo Egydio Martins, era o alvo preferencial dos duros, que tentaram
aproveitar-se do fato de ele ter nomeado o empresário e intelectual liberal José
Mindlin secretário da Cultura e este, por sua vez, ter levado Herzog, e com ele
um “ninho de comunistas”, para uma emissora de televisão pública (para os
militares, sinônimo de oficial).
A
declaração explícita de guerra da linha dura ao núcleo brando do regime revoltou
a consciência cívica nacional, que então ficou sabendo que a violência do Estado
não prendia, torturava e matava apenas os revolucionários que queriam tomar o
poder pelas armas para instalar uma ditadura de esquerda. Para que isso
ocorresse foi fundamental a ação conjunta de três homens: o rabino Henri Sobel,
que se recusou a sepultar Herzog entre suicidas no cemitério judeu; o arcebispo
dom Paulo Evaristo, cardeal Arns, que desafiou o regime convocando uma
celebração ecumênica que lotou a Sé; e Audálio Dantas. O presidente do Sindicato
dos Jornalistas teve o tirocínio e a coragem de levar a opinião pública
brasileira de forma firme, mas serena, à consciência de que a luta contra a
ditadura era de todos e não tinha acabado com o triunfo do Estado contra a
extrema esquerda dizimada. Foi o começo do fim do arbítrio
dividido.
Em
janeiro de 1976, o metalúrgico Manuel Fiel Filho, militante católico de
esquerda, foi morto no mesmo DOI-Codi em que Herzog foi pendurado pelo cinto, o
comandante do 2.º Exército foi exonerado com desonra e o colega de ofício da
vítima Luiz Inácio Lula da Silva liderou greves no ABC. E o regime começou a
ruir, sufocado pelo cinto de Herzog no pescoço, após ter feito a foice e o
martelo sucumbirem a rajadas de metralhadora.
Audálio
Dantas foi um dos artífices dessa derrocada.
José Nêumanne é jornalista,
escritor e editorialista do Jornal da Tarde.
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