Roberto DaMatta
No ocidente de todas as racionalidades (inclusive as
irracionais, voltadas para a destruição como premissa médica, missão
civilizadora e imperiosa necessidade), os sonhos sempre foram ligados ao
futuro. Ao que pode ou, nos casos dos adivinhos mais radicais, ao que
vai ocorrer.
Não é, pois, por acaso, que quando Freud contestou essa "verdade
verdadeira", ao mostrar que os sonhos falavam mais do passado, e do que
estava dentro de cada um de nós, do que do mundo exterior e dos eventos
vindouros, ele causou tanta celeuma. Antes dele, o maior intérprete de
sonhos do nosso universo
judaico-cristão-capitalista-marxista-leninista-fordista-nazista-populista-chapliniano-pós-contemporâneo...
(pense e acrescente o que você quiser, caro leitor...) era o bíblico
José do Egito, revivido em quatro volumes de 400 páginas cada um por
Thomas Mann. Se o genial Lévi-Strauss realizou a façanha de interpretar
mitologicamente, nas suas mitologias (quatro volumes de 400 página cada -
eis o número quatro novamente), mais de 800 mitos dos ameríndios,
circunscrevendo-os em fórmulas canônicas e revelando aspectos
surpreendentes do chamado "pensamento selvagem"; Thomas Mann realizou o
inverso: ele transformou um mito sagrado numa meditação independente de
prova teológica ou política - essas legitimações ancoradas na autoridade
suprema, indiscutível e anti-humana, como gostam os idiotas - cerca de
25 versículos do Gênesis. Fez de versículos para serem lidos
num templo um romance que fala direta e pessoalmente à alma e ao coração
de um leitor, não de um crente. Escreveu um sonho feito não de mitos
pensando mitos, mas de um mito repensado como uma narrativa humana, na
qual a afeição ou o amor pelos outros é o fio. Na literatura não se
prova nada - exceto o amor do sonhador pelo sonhador que lê. Eis sonhar
pelo sonhar. Esse ato exclusivamente humano realizado por quem joga fora
toda uma vida pintando, compondo, lendo, ensinando e pelo tal "amor à
arte". Esse amor que não precisa de registro, reconhecimento ou memória.
Coisas de quem corta a orelha e confunde meios e fins, de quem destroca
sonhos e realidade...
* * * *
Quem joga no bicho, essa brasileiríssima instituição encoberta pela
nossa notória mendacidade oficial, sabe que um dos melhores palpites
para "acertar" num bicho e ganhar uma bolada é um evento impossível de
ser programado. Um sonho nítido, a morte súbita de um ente querido, um
acidente de automóvel envolvendo uma celebridade, a data de uma cobrança
esquecida. Tudo o que é desenhado pela mão invisível do imprevisto, do
acaso ou da inocência, é um bom palpite. É um aviso esperançoso. Pode
transformar uma pessoa comum em um barão acima das leis e da necessidade
de trabalhar.
* * * *
O melhor palpite é feito do casamento do imprevisto (quase sempre
doloroso) com a esperança. O que, na maioria dos casos, constitui o
infortúnio e promove o ódio, a frustração, a culpa e o ressentimento -
esses demônios recorrentes da vida. O jogo atrai porque, entre outras
coisas, ele possibilita arriscar na ausência do acaso. Se tudo segue uma
ordem, se tudo foi planificado, se o dia de ontem foi tranquilo, por
que não se pode acertar num evento futuro? O sonho previsível, porém,
pode virar o infortúnio que leva a uma dolorosa questão: por que ocorreu
comigo? Essa é a pergunta que consome as cosmologias porque ela
denuncia (ou anuncia) catástrofes e, simultaneamente, abre a pessoa ou o
sistema aos êxitos de emergência. O jogo do bicho me ensinou, por
intermédio de minha avó Emerentina que teve dois maridos, o primeiro
morto por assassinato, perdeu mais filhos do que comanda qualquer carma
ou holocausto, mas não abandonou o gosto de viver e jogar - há
diferença? -, só no despotismo é que não há fortuna sem infortúnio; ou
domingo sem segunda-feira.
No livro A Ponte de São Luis Rey, Thornton Wilder trabalha
esse problema por meio do irmão Junípero que, como o antropólogo inglês
Edward Burnett Tylor, criador do conceito de cultura e inventor da
antropologia da religião, entendia que "se há leis em algum lugar, deve
existir lei em toda parte". A determinação dos destinos era o foco do
franciscano que fazia uma tabela dos pecados e virtudes dos seus
paroquianos. Alfonso tinha a nota 4 em bondade e em piedade, mas 10 em
trabalho pelo bem comum; Vera, porém, tinha 10 em trabalho pelo bem
comum e piedade, mas 0 em bondade! Não havia coerência: as ações humanas
mais precisas têm consequências imprecisas.
* * * *
Há lógica na alternância do dia e da noite - exceto nas eclipses. O
problema é que não há ser humano que não precise de uma lua azul ou de
um sol camuflado. Ou de chuva com sol. O problema não é o infortúnio que
marca a maioria das vidas. É como eles são tratados. Por isso o sonho
tem que ser sonhado - interpretado - como José fez com o deus rei faraó.
Anos de fartura se seguem a anos de penúria. Os cavalinhos continuam
correndo e os cavalões comendo, como na poesia de Bandeira. E nós vamos
continuar assistindo a essa medíocre ladroagem geral sem dizer nada? Sem
sonhar?
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