Arnaldo Jabor
É impossível que Dilma não esteja irritada com o Lula.
Assim que ele melhorou do tratamento, começou a falar e a criar difíceis
factoides para ela resolver. Lula talvez esteja zonzo com a doença que
tem de enfrentar, traumatizado com o choque de se descobrir 'mortal',
frágil como todos nós, depois da glória de ter governado sob beijos do
povo. Essa doença poderia ter-lhe emprestado uma sobriedade
'democrática' maior, mas parece que vivencia a saída do exílio no
Sírio-Libanês quase como uma ressurreição, querendo se meter em tudo,
como se fosse o chefe de um governo paralelo ao de sua 'protegida'.
Lula nasceu de uma conjunção astral raríssima no ABC e foi muito
'moderno' quando surgiu, criando um sensato sindicalismo de resultados,
acreditando em pressão e negociação com patrões. É natural que se tenha
deslumbrado com as multidões de operários a seus pés nos comícios, mas
até hoje se considera 'especial', um messias metalúrgico que deve
comandar um país 'sem rumo'. Lula acredita mesmo em seu ibope.
Depois da fundação do PT, um enxame de 'soviéticos' desempregados
transformaram-no em um líder operário a ser 'aperfeiçoado' (e
controlado) teoricamente, para que eles chegassem um dia ao poder, numa
estratégia 'gramsciana' vulgar. E chegaram em 2002, até o vexame do
mensalão que quase queimou o filme de Lula.
E, no entanto, ele devia agradecer ao Roberto Jefferson por tê-lo
livrado dos comunas tutelares, pois aí ele pôde encetar sua jornada para
as estrelas, sua viagem em direção ao show midiático que encenou nos
quatro anos seguintes, pensando apenas em sua imagem, enquanto Dilma
trabalhava como uma 'boia-fria', varrendo o Planalto e apagando a luz ao
fim do expediente. Lula nos deixou de herança a maldição de um PAC
eleitoreiro que só realizou 17% das metas, criando a ideologia do 'tudo
pode, desde que seja bom para eu governar', abrindo a porta para as
alianças sujas que criaram a cachoeira de corrupção que jorra sobre nós.
Os comentaristas ficam desorientados diante do nada que os petistas
criaram com o apoio do povo analfabeto. Os conceitos críticos como
"razão, democracia, respeito à lei, ética" ficaram ridículos,
insuficientes raciocínios diante do cinismo impune e da paralisia
política.
Agora, Lula só faz jogar batatas quentes no colo de Dilma, que tem de
se virar - ("Afinal, ela não é uma 'bichinha' tinhosa?" - como ele
disse na campanha?) Assim, ele deu força à CPI oportunista para se
vingar do PSDB, dos jornais e revistas, do procurador Gurgel, para melar
o julgamento do 'mensalão', arrasar o Serra em São Paulo, com o Haddad
do Enem.
"Dane-se..." - ele deve ter pensado - "se for um tiro no pé, será no
pé da Dilma! Azar dela; importante é eu recuperar meu poder, deixar a
barba crescer e voltar em 2014..."
Dilma deve estar fula com o dilema que Lula lhe deixou - governar o
País entre o PT e o Sarney. E isso justamente agora, quando o perigo
econômico se agrava, com a produção industrial caindo a níveis de 20
anos atrás e o País dependente da exportação de matéria-prima, à beira
de uma explosão da 'bolha', como alertam economistas daqui e de fora em
publicações como o Foreign Affairs e The Economist.
Lula nos legou uma presidente dividida entre o liberalismo e o
Estado-pai, tendo de dar uma no cravo e outra na ferradura. E, além
disso, ficou irritado, porque sua afilhada tem vida própria, muito mais
coragem que ele e reconhece a importância de fatos como o Plano Real que
ele surripiou para si; ela sabe da infernal 'faxina' que tem de fazer,
para limpar os detritos que ele deixou.
Dilma tenta resolver esse impasse entre a modernização e o atraso,
como foi no veto que fez ao Código Florestal, mesmo desagradando a
aliados ruralistas. Dilma é obrigada a governar nas brechas do possível,
como foi no caso dos juros dos bancos, pois não consegue fazer reformas
mais abrangentes e isso faz aparecer seu lado autoritário, impaciente,
impondo obrigações, aos capitalistas 'canalhas'. Mas ela sabe também que
capitalismo é um modo de produção e não regime político das "elite";
ela sabe que, no caso brasileiro, é a única coisa que pode arrebentar o
'bunker' patrimonialista secular. Assim dividido, o governo atual se
contenta com o autoengano, com a ilusão de que o Brasil está pronto para
'resistir' a uma crise mundial. Mantega diz que somos fortes e Dilma
nos garante que estamos preparados em 100 ou 200%. Mas, só resistir? E
os planos de reformas que não conseguem passar na estreita porta entre o
PT e o PMDB?
Agora, Lula acaba de criar uma nova crise para Dilma. Vendo que o
plano da CPI não rolou como ele queria e que até pode aporrinhar o
Governo Central com respingos da Delta, Lula tentou mudar a opinião dos
ministros do Supremo Tribunal Federal, como noticiou a última revista
Veja, em uma entrevista com o ministro Gilmar Mendes, que afirma que
Lula cobrou dele e de outros ministros o adiamento do início do
julgamento do mensalão, o que significaria a prescrição de muitos dos
crimes. É um fato gravíssimo que vai dar pano para mangas. Será que,
inconscientemente ("não; não é possível! - penso eu), Lula não é levado a
prejudicar o governo de sua afilhada, que hesita, dividida entre fazer o
que acha e em desagradar ao criador?
Dilma me parece ter uma escolha partida: de um lado ainda aflora uma
desconfiança com a sociedade e um desejo de impor obrigações do 'alto'
e, de outro, tem consciência de que não é 'reacionário' privatizar
estradas podres e antros de corrupção em estatais inúteis. Mas, em seu
palácio paralelo, no Planalto alternativo em que se encastela, Lula
trabalha contra tudo que possa ser uma modernidade ágil, impessoal, mais
anglo-saxônica, digamos. Isso é insuportável para populistas como ele,
que só conseguem operar no velho sistema de um velho Brasil.
É por isso que o País está em suspense, sem nitidez ideológica ou
programática, confiando na grana futura do pré-sal ou da vinda de
capitais para engordar nossa 'bolha'. Falo isso, mas acho que a
presidente tem um claro desejo de melhorar seu país, pelo qual ela lutou
até na guerrilha e tortura.
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