José
Nêumanne
Promiscuidade
da lei com o crime só terá fim com Protógenes punido e Demóstenes
cassado
Há uma diferença
crucial entre o bandido, armado ou desarmado, que o assalta e o sujeito finório
que entra em sua casa como amigo ou por ser parente e, depois, é flagrado
furtando um talher de prata à mesa ou assediando alguma mocinha incauta no sofá
da sala. Cada vez que o cidadão brasileiro toma conhecimento de mais uma
falcatrua realizada pelo ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares em Goiás, Minas ou
no Espírito Santo, já encara o fato com normalidade, assim como normal é a
notícia de mais um descalabro protagonizado por Marcos Valério Fernandes. Esses
personagens do escândalo do “mensalão” já constam da crônica policial. Deles não
se espera outra coisa. Alguém imaginaria um deles patrocinando uma causa
benemérita? Seria como testemunhar Chico Picadinho pedindo doações para a Santa
Casa de Misericórdia. Coisa muito diferente, contudo, é saber que Protógenes
Queiroz teve sua voz reconhecida num grampo de seus colegas federais na
investigação do bando criminoso do contraventor Carlinhos Cachoeira. E, mais
ainda, deparar com Demóstenes Torres funcionando como despachante do bicheiro
e usando para tal sua condição de parlamentar.
Acontece que
Protógenes Queiroz foi agente federal da lei. E Demóstenes Torres é um
representante do povo. Uma coisa é se assustar com uma pistola imaginária de um
assaltante na testa ao acordar no meio da noite e abrir-lhe o cofre para ter
surrupiadas as joias da família. Outra, muito pior, é ficar sabendo, de repente,
que o amigo íntimo tido como o mais correto, o mais moralista de todos, o que
mais parecia ser a favor da lei, da moral e dos bons costumes não passa de um
vulgar serviçal do crime organizado que assalta a República em proveito
pessoal.
A bem da
verdade, não é bem esse o caso de Protógenes. Como delegado da Polícia Federal
(PF), ficou famoso depois de assumir as investigações da Operação Satiagraha.
Seus métodos, no mínimo, heterodoxos de investigar as hostilidades entre os
sócios italianos da Italia Telecom e o administrador de fundos brasileiro Daniel
Dantas, cuja prisão lhe rendeu enorme exposição na mídia, motivaram processo da
própria PF, movido antes de ele se candidatar à Câmara dos Deputados. Eleito
pelas sobras dos votos do palhaço Tiririca, agora tem
imunidade.
Ao declarar a
investigação ilegal, a Justiça deu razão ao juiz federal Ali Mazloum, que a
questionou por achar que o policial exacerbou da função em busca de notoriedade
para se candidatar a um cargo político. É, de fato, questionável, para não usar
termo mais duro, vender a imagem de Eliot Ness do Sapopemba para se tornar
estrela do noticiário e, com isso, ganhar notoriedade suficiente para almejar
uma cadeira no Legislativo federal. No entanto, o policial processado pela
instituição a que serve conseguiu legenda no Partido Comunista do Brasil (PCdoB)
e licença da Justiça Eleitoral para disputar votos. E, não os obtendo em número
suficiente para se tornar representante do povo, teve a preciosa ajuda do
palhaço puxador de votos para atingir seu objetivo
político.
Não é de
estranhar que, com esse currículo, ele tenha sido flagrado em conversa
telefônica com o sargento da Aeronáutica Idalberto Matias de Araújo, conhecido
como Dadá ou Chico, do estreito círculo íntimo de Cachoeira. Menos ainda que
tenha apelado, como está habituado a fazer, para a tergiversação ao reagir à
denúncia apresentada contra ele pelo presidente do PSDB, Sérgio Guerra (PE), que
pediu sua cassação ao Conselho de Ética da Câmara. Sua Excelência apresentou
como prova de quebra de decoro parlamentar imagem do tucano indicando ao
correligionário Rogério Marinho (PSDB-RN) cartaz, que este rasgou, à porta de
seu gabinete conclamando pela convocação de uma CPI sobre a “privataria tucana”,
tema de best-seller de Amaury Ribeiro Jr., protagonista do nebuloso caso de
falsificação do pedido de quebra de sigilo fiscal de Verônica, filha do tucano
José Serra, candidato a prefeito de São Paulo. Em vez de explicar ao público,
que paga seus proventos de policial e seus vencimentos de parlamentar, que
relações mantém com Dadá ou Chico, o deputado comunista preferiu acusar o
presidente nacional do PSDB de estar a serviço de Daniel Dantas, cujos métodos,
segundo ele, se assemelham aos do bicheiro. Mas o caso do grampeador apanhado no
grampo, como está descrito acima, é muito diferente do de Demóstenes Torres,
embora suas biografias tenham, na origem, pontos comuns. Como Protógenes, o
senador hoje sem partido entrou na política pela porta do combate ao crime, na
Secretaria de Segurança de Goiás.
Aí, contudo,
acabam as semelhanças. Até ter sua intimidade com o bicheiro devassada pelos
grampos telefônicos da PF, o oposicionista não tinha em sua biografia
profissional ou política nenhuma mancha evidente. Ao contrário, ele vendeu à
Nação a imagem de cidadão acima de qualquer suspeita, um Catão moralista
implacável que perseguia de forma exemplar e corajosa os malfeitores (para usar
termo da preferência da presidente Dilma Rousseff) que dilapidam os recursos
públicos aproveitando-se de cargos no governo ou poder político. A revelação de
sua dupla face – perseguidor de criminosos a serviço de um fora da lei –
surpreendeu a Nação inteira, dando-lhe a desconfortável sensação de que ninguém
é confiável. Parafraseando Ivan Karamazov, o personagem de Dostoievski, é como
se subitamente descobríssemos que, não sendo Demóstenes honesto, ninguém jamais
o seria.
Para pôr fim à
maligna promiscuidade entre homens da lei e sequazes do crime os parlamentares
de bem devem exigir punição para o grampeador pilhado no grampo dos colegas e
providenciar a exemplar cassação do falso moralista que fingiu ser santo para
servir ao demônio. O ectoplasma de Demóstenes que desfila no Congresso Nacional
é um tumor que apodrece a política e infecciona a
democracia.
Jornalista,
escritor e editorialista do Jornal da Tarde
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