JOSÉ NÊUMANNE
No fundo, a mobilização grosseira e atrevida de segmentos do Partido dos
Trabalhadores (PT) e de grupos com interesses na indústria cultural pela
derrubada da ministra da Cultura, Ana de Hollanda, é mais um efeito colateral do
loteamento de cargos públicos de primeiro escalão por partidos em troca de apoio
ao governo no Congresso. De fato, uma coisa nada tem que ver com a outra, mas
essas pessoas que redigem manifestos e procuram algum jornalista amigo para lhes
dar repercussão pública devem pensar algo como: "Puxa, vida, se o PMDB, o PR, o
PRB ou qualquer outra siglazinha ancorada no lago do Palácio do Planalto nomeia
e derruba ministros, por que nós não o faríamos?" Por mais absurda que essa
conexão possa parecer à primeira vista, ela nunca será mais grotesca do que a
cruzada em si.
A primeira motivação para o ataque sistemático, desproporcional e
absolutamente inócuo (pelo menos tem sido até agora) atende a uma questão: "Por
que ela e não eu?" É claro que deve haver no Brasil milhões de cidadãos e
cidadãs que se sentem mais preparados do que a economista Dilma Rousseff para
exercer a Presidência da República. Só que a eleita foi ela e a ela cabe nomear,
se não todos, porque tem realmente de aceitar indicações das bases para
sobreviver politicamente, a maioria dos ministros que a ajudam a governar.
Haverá também milhões de brasileiros decentes e bem-intencionados à espera de um
convite do Planalto para ocupar uma pasta - da Fazenda à da Pesca. Pode ser que
alguns façam como aqueles comunistas de antanho que ficavam no aguardo da prisão
de mala e cuia prontas, com escova de dentes, dentifrício e sabonete entre os
pijamas, naquele tempo em que nossas prisões ainda permitiam esses luxos. No
entanto, quase todos, coitados, esperarão em vão. Pois muitos são candidatos e
poucos serão escolhidos, lei darwiniana inventada pelo profeta galileu. Para
estes a resposta apenas inverte a questão: "Por que eu e não ela?"
Pois o diabo é que a ministra da Cultura tem, digamos, pedigree para o posto:
é filha do professor (da USP) Sérgio Buarque de Hollanda, autor de Raízes do
Brasil, obra clássica que ilumina o entendimento histórico e sociológico de
nosso país, e de Maria Amélia, Memélia, que virou uma espécie de padroeira do PT
de Lula em suas primeiras derrotas para a Presidência. E, convenhamos, a moça é
irmã do maior ícone vivo da cultura brasileira, Chico Buarque de Hollanda. Isso
basta para justificar a nomeação? Mas é claro que sou o primeiro a responder que
não. Só que, ainda assim, quem for capaz de enxergar além do próprio nariz
deveria respeitá-la ao menos por esta razão. As cenas de grosseria explícita
registradas nessa guerra sem quartel contra a ministra são, para começo de
conversa, demonstrações de uma cafajestice na qual o mundo é pródigo e o Brasil,
principalmente a patrulha cultural do PT, recordista mundial.
Sou do tempo em que derrotado cumprimentava vencedor pela simples e boa razão
de que a civilidade é uma das condições para a permanência do jogo democrático.
Juca Ferreira, segundo ministro de Lula e antecessor de Ana, entrou no governo
pela porta da cozinha de Gilberto Gil. Sob os auspícios do sonho espanhol de
recolonizar o mundo, e não mais apenas a América não imperialista, o artista e
seu "maçaneta" espalharam o passa-moleque, conveniente para os grupos que os
cortejam e as produtoras multinacionais de conteúdo, de que cultura é um bem
coletivo e um meio de aumentar o acesso do membro da comunidade pobre da
periferia do Ó é reduzir-lhe o custo com o abatimento do direito do autor. Sob
seu patrocínio no MinC, venderam-se o furto fácil da internet aberta (Creative
Commons) e a falácia de que produto cultural bom não é o de qualidade, mas o
mais barato. E o autor que se "exploda".
Ana assumiu o ministério enfrentando sem estardalhaço, com seu estilo doce e
firme, esse esbulho "politicamente correto". O direito do autor e o mercado são
conquistas da civilização que estabelecem o único critério pelo qual uma
produção artística ou cultural deve ser avaliada: o mérito do talento. O melhor
é melhor e vive do que faz. Gil e Juca tentaram inverter essa constatação feita
pelos iluministas franceses, propondo substituir a qualidade pela quantidade. E
defenderam, ao longo de oito anos, a redução do direito autoral e a submissão do
mercado à tirania do lumpesinato. Que Chico Buarque, que nada! O povão quer o
funkeiro da Rocinha.
O caso é que há lugar para todos no mercado - o xote pé de serra e o forró de
plástico. O povo ouve o que quer e paga pelo que prefere ouvir. Casas lotadas
por Chico Buarque no HSBC Brasil não tiram fãs dos shows de Criolo. O mercado
garante o moço bonito que virou unanimidade nacional e o poeta de vielas das
favelas. Ao Ministério e às Secretarias Estaduais de Cultura não cabe tutelar o
lumpemproletariado, mas incentivar orquestras sinfônicas e produções de
vanguarda. Além de pegar R$ 1,64 bilhão para bater recorde sem precedentes em
investimentos na pasta (furto o valor de artigo do cineasta Cacá Diegues em O
Globo de sábado).
Não me lembro de ter lido estes números na entrevista de Juca Ferreira à
Folha de S.Paulo em que ele inaugurou no Brasil o choro dos substituídos com um
show de grossura e ressentimento explícitos, desconhecendo evidências como o
fato de o investimento em Centros de Cultura ter passado de R$ 50 milhões no
último ano de Juca/Lula para R$ 62 milhões no primeiro sob Ana/Dilma, com
previsão de R$ 114 milhões para 2012.
Como uma forma de desqualificar a ministra, seus solertes detratores, de olho
no butim, dizem que ela só não caiu porque Dilma não quer dar o braço a torcer.
Quem acredita no mérito e desconfia do uso do lumpesinato reza todo dia para que
o braço da presidente prossiga duro de torcer. Esta guerra não é fácil, mas não
pode ser comparada com a crise da base aliada.
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