Roberto DaMatta
Assisti ao Cavalo de Guerra. Havia tempo que eu não
tomava parte do estranho ritual de ir ao cinema para participar da
exibição mecânica de um drama que independe de quem o assiste. Pois
diferentemente de outros rituais de desempenho - como as celebrações
religiosas, cívicas e teatrais - onde os oficiantes dependem da
cumplicidade dos espectadores, no cinema somente a plateia pode
atrapalhar-se a si mesma, falando alto ou chegando atrasada. O que não
atinge o filme que, indiferente como um meteoro, "passa" transformando
fotografias mortas numa narrativa viva.
Invejei Steven Spielberg por ter inventado mais um cavalo para a
nossa extensa mitologia equestre. Tínhamos o de Troia, o de batalha (que
ocorre todo dia no Brasil); o Trigger, do Roy Rogers, um remoto caubói;
o Silver, o cavalo prateado do Zorro ex-amigo do Tonto (um índio); e,
para terminar uma formidável lista, o cavalo branco de São Jorge que
Napoleão, com sua megalomania digna dos presidentes republicanos, tentou
roubar. Eis uma modesta mostra de como o cavalo desempenha, ao lado do
cachorro, um denso papel na nossa imaginação.
O cavalo detém a força do puro poder e da mobilidade, ao lado de uma
contida e disciplinada imponência, ausente nos cães mais indômitos.
Mesmo no papel humilde de puxador de um veículo, o cavalo chama atenção
pela sua obediência tranquila. Dele é aquele ar bovino, aquele sossego
das sujeições serenas: feliz com os seus limites e ciente do seu papel.
Mas é dele também o poder de chegar rapidamente a algum destino. Os
cavalos permitem voar e alguns são alados...
Ser dono de um cavalo ou montá-lo é sinal claro daquela liberdade
igualmente contida da nobreza, como mostra a melhor sociologia do cavalo
que li até hoje, a de Câmara Cascudo.
Hoje em dia não temos mais cavalos, diria um leitor cético diante de
minhas baboseiras etnológicas. Verdade, mas nas nossas garagens estão
centenas de "cavalos de força" devidamente encurralados nos nossos
automóveis. Temos centenas de cavalos prontos para galopar sincronizada e
perigosamente - em cima dos outros quando nos movemos pra valer!
E continuamos a ter cavalos de guerra que lutam contra ladrões,
marginais ou subversivos que infestam nossas cidades mal planejadas e
sem fiscalização que julgamos protegidas por São Jorge, o santo inglês
que, como diz Gilberto Freyre, tornou-se popularíssimo no Brasil por ser
um santo montado num país de escravos a pé e de aristocratas falsos,
preguiçosos e gordos. Mais preocupados - como ocorre até hoje - com suas
famílias do que com o seu povo.
Esse cavalo de batalha não teme dragões. Ademais, ele é também o
símbolo, como assinala o sociólogo Thorstein Veblen na sua pioneira
teoria do consumo como um traço básico da identidade social no
capitalismo - um penhor de consumo conspícuo ou supérfluo. Um consumo
como expressão de posição social e não de necessidade. Sobretudo no
papel de "cavalo de corrida".
Dominar um cavalo fazia parte do treinamento dos nobres. Quem mandava
num cavalo sabia comandar pessoas. O cavalo eleva e dá capacidade ao
seu dono, servindo como perfeita metáfora para uma suposta (ou imposta)
superioridade social. Que o leitor preste atenção nas estátuas
equestres. Nelas, quanto mais importante o herói, mais sua montaria tem
as patas levantadas; e, quanto mais patas no ar, em atitude de movimento
grandioso, mais heroico é o gesto e o personagem.
Um dado empolgante da mitologia do cavalo é a sua identidade com o
cavaleiro. Quando os dois formam uma só pessoa (ou "conjunto"), como
ocorre nas provas equestres, verifica-se um grau de simultaneidade que
torna difícil não ver a montaria e o montador como uma só pessoa. Foi
assim que os astecas avistaram os espanhóis que os conquistaram e
dizimaram.
Essa figura do cavalo como símbolo de poder - como animal de trabalho
e como montaria que passa a ser uma arma quando os seus donos entram em
guerra - foi o que mais me tocou no filme. Pois o que a narrativa de
Spielberg realiza, em estilo de John Ford, é mostrar como cada um dos
seus "donos" o vê como uma projeção de si mesmos.
Joey (esse é o nome do cavalo herói) é construído e constrói o seu
primeiro e "verdadeiro" dono, o rapaz que se vê obrigado a treiná-lo
como besta de trabalho; seu segundo dono é um oficial inglês de
Cavalaria que o usa como uma arma de guerra; depois chega a vez de
"pertencer" a uma menina francesa e doente que o torna parte de suas
delicadas fantasias de adolescente; daí, Joey é de um duro, mas sensível
sargento encarregado de puxar canhões para o Exército alemão; até que,
aterrorizado e perdido na terra de ninguém e de todos os horrores
humanos que é a guerra, o cavalo tenta escapar somente para ficar
embaralhado nos arames farpados - típicos de nosso modo de viver - que
dividem ingleses e alemães.
Então Joey fica como todos nós ficamos quando a vida nos leva para a
terra enlevada do sofrimento, dos pesadelos, das lágrimas e da solidão.
É justamente nesse momento que Joey se torna cavalo e, assim, como o
"outro" tanto dos ingleses quanto dos alemães, ele neutraliza a guerra,
fazendo com que dois soldados inimigos que tornem parceiros na tarefa de
libertar e salvar esse "outro do outro", como diz Viveiros de Castro.
Eis a melhor cena do filme e um dos momentos mais belos que vi no
cinema. Pois quem somos nós, autointitulados humanos, senão meros
cavalos igualmente passando de mão em mão e servindo como veículos para
que a vida possa ocorrer por meio de nossas existências?
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