Arnaldo Jabor
Já escrevi sobre o carnaval muitas vezes, me repetindo
todo ano, porque minha coluna sai nas terças-feiras gordas. Vou escrever
sobre o quê? Sobre a corrupção que invade o Brasil todo com seus blocos
de sujos? Não dá.
Sempre que penso no carnaval lembro-me dos dias da minha infância. O
carnaval chegava aos poucos e não era essa explosão de felicidade
maníaca que vemos hoje em dia.
Já se ouviam os primeiros clarins do carnaval na chegada do verão,
com as marchinhas tocando no rádio fazendo dueto com as cigarras que
cantavam entre as flores vermelhas do flamboyant de minha casa (para
onde foram as cigarras pós-modernas?)
Minha primeira lembrança do carnaval era o cheiro do lança-perfume.
Até hoje me irrita pensar que baniram essa linda arma da alegria. O
lança-perfume era tudo. Havia umas garrafinhas de vidro, frágeis como
ampolas, mas o belo símbolo do carnaval era o "Rodouro Metálico". Era um
tubo dourado, grosso, que ejetava um fino jato de éter, gelando as
costas nuas das adolescentes que se torciam em risos sensuais. O perfume
flutuava pelas avenidas como uma nuvem de euforia salpicada de confetes
coloridos e rasgada por serpentinas.
O carnaval de hoje parece uma calamidade pública, disputada pelo
narcisismo oportunista de burgueses se despindo para aparecer na TV. O
carnaval foi deixando de ser dos "foliões" para ser um espetáculo para
os outros; o carnaval deixou de ser vivido para ser olhado.
Não há mais músicas de carnaval - notaram? Temos de recorrer às
marchinhas e aos sambas do passado. Mas, quase não precisamos das
canções, nesta época convulsa. Só há os corpos, as multidões
enlouquecidas. Quando passam as baterias das escolas, quando uns garotos
sambam no pé, ainda vislumbramos os traços de uma beleza antiga. Hoje
há os corpos malhados, excessivamente nus, montanhas de bundas se
exibindo em uma metáfora de liberdade, pois ninguém tem tanta tesão
assim, ninguém é tão livre assim. Carnaval sempre foi sexo - tudo bem -
mas, antes, havia uma doce inibição no ar, havia a suave caretice, uma
moralidade mínima, havia clima de amor romântico nos bailes.
Dirão que sou um nostálgico estraga prazeres, mas tenho a sensação de
que há uma drástica mudança de rumos neste progresso vertiginoso que
nos assola.
Nosso passado era feito de toscos sambinhas, de permanências
coloniais; mas, mesmo de equívocos do nosso atraso, havia alguma coisa
original e frágil que a massificação enterrou.
Ainda bem que nos últimos anos voltaram os grandes blocos do asfalto,
depois de um período em que só havia as escolas de samba e um grande
vazio na cidade. Creio mesmo que essa volta aos blocos de rua tem a ver
com a nova conexão entre as pessoas, numa espécie de rede social
invisível nos céus do País.
O novo carnaval de rua tem algo de ocupação das cidades, de uma fome
de democracia muito diferente dos tempos em que as primeiras-damas da
ditadura davam uns passinhos de samba nos camarotes da Sapucaí. Nos
foliões das ruas há quase um desejo de morrer esmagados, num fervente
formigueiro onde todos se sentem um grande "um".
Há uma espécie de comício dançante que nos purga das dores do ano.
Mas, para descobrir um carnaval ainda mais puro, temos de ir aos
detritos que sobraram dos anos 40 e 50, assim como olhamos velhas
fachadas entre prédios modernosos. Os blocos de "sujos", esses sim, com
uma alegria selvagem e sem frescuras, inconscientemente velam pelos
carnavais do passado, por uma inocência perdida. Podemos ver nas ruas a
preciosa origem do carnaval profundo. Lá estão os desesperados, os
famintos de amor, os malucos, os excluídos da festa oficial.
A explicação antropológica de "pobres querendo ser reis" por três
dias, de que há um exorcismo alegre da luta de classes, não esgota o
assunto. Nos blocos dos anjos de cara suja, dos travestis escrotos, dos
vagabundos há uma autocaricatura que denuncia a "mixaria" da vida que
vivem; é o carnaval dos miseráveis, a dança do escracho na melhor
tradição da arte grotesca, dessacralizando as obrigações da virtude e da
obediência.
Em nosso carnaval há uma animalidade pulsante querendo uma
"civilização" sem mal-estar, questionando o pensamento único do bom
senso anglo-saxônico. Brasileiro pode não ter espírito público,
consciência social; mas, certamente, tem um Inconsciente à flor da pele,
ao contrário dos países que pagam um alto preço pela Razão triste, por
uma felicidade comedida.
Somos primitivos no melhor sentido da palavra. A sacanagem das matas
profundas é diferente das surubas calvinistas de Nova York, que
inventaram o sexo torturado nas boates doentias e acabaram na aids.
Nós só pensamos em ficar nus, como se quiséssemos voltar para trás,
para uma grande tribo vermelha ou mulata. Há uma "pureza" nessa explosão
de carne que não se explica, há um desejo de "indianização", há o
desejo de fundar outro país, avesso a autoritarismos, avesso à tragédia
da pobreza. Queremos uma sociedade organizada, mas feminina; justa, mas
alegre. Onde existem essas montanhas de carne, de corpos se jogando uns
contra outros, onde podemos ver essa busca louca por um orgasmo utópico,
essa fome de amar? No carnaval, os homens querem virar mulheres. Todos
querem ser tudo: os homens querem ter seios e fecundidade e as mulheres
querem ser ágeis e sedutoras, máquinas de excitar pênis dançantes. O
mundo macho tem muito a aprender com as mulheres no carnaval, as filhas
das mucamas, das escravas lindas.
Todas as metáforas do carnaval são ligadas à ideia de abundância, de
fecundidade, tudo lembra um grande prazer que nos salvará um dia, contra
um futuro de racionalidade e paranoia. O carnaval brasileiro tem a
utopia de transformar a cultura em natureza. Nosso "fim da história"
seria uma grande bacanal delirante entre nossas três raças entrelaçadas
em um casamento grupal doido: negros, brancos e índios dando à luz um
grande bebê mestiço e gargalhante, que ensine que a vida é arte e a
lógica careta é a morte.
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