Roberto DaMatta
Chega o ano-novo, mas os nossos grandes problemas estão
nos velhos hábitos situados naquela zona malandra centrada entre o
Estado (essa milionária máquina gerencial pública com suas regras
opostas ao bom-senso) e a sociedade. Nós, os cidadãos comuns que não
recebemos milionários auxílios-residência, não temos licença prêmio ou
atrasados a receber nem fomos eleitos para algum cargo público com o
propósito de usá-lo para virarmos nobres e, melhor que isso, ficarmos
fora do alcance da lei. Nós, os comuns, não temos emprego - temos
impostos e trabalho!
Entramos o ano-novo com o Poder Judiciário em crise. Quem julga os
juízes numa terra onde tudo tem lei, mas os "bandidos" (eis uma
categoria cada vez mais ampla) continuam leves, livres e soltos? A Lei
da Ficha Limpa foi adiada e bloqueada, o "mensalão" pode ser devidamente
engavetado. Há, pasmem, uma "lei da palmada!" E o Poder Executivo faz
sinal de faxina e chama falcatruas de malfeitos, enquanto a foto de
Daniel, filhinho do senador ficha suja Jader Barbalho - empossado com o
ritual que aristocratiza os eleitos -, fazendo o antigo sinal que nos
chama de otários, é o melhor símbolo desse 2011 que findou.
Entrementes, o capitalismo vai mal. Mas a nossa economia cresce e
ultrapassamos o Reino Unido. Aqui há clareza. Sabemos quem vai mal ou
bem. O diabólico mercado pune os bandidos e dá um pontapé chapliniano na
bunda dos hiperespeculadores. Quando não promove cadeia e uma nova
consciência social nos Estados Unidos. Hoje, sabemos que o maior inimigo
do capitalismo não é a classe operária, mas os gênios de Walt Street e
do Silicon Valley que inventam bolhas de dinheiro fácil e superprogramas
de comunicação, enquanto seus usuários não têm nada pra dizer.
Mas, como compensação positiva, entramos o ano com uma intolerância
maior para a bem estabelecida desigualdade dos poderosos (localizados no
Estado) e a igualdade devida a cada um de nós como cidadãos
efetivamente republicanos. Desse aspecto, ninguém mais do que a imprensa
tem atuado com eficiência e equilíbrio. Pois é ela que tem mostrado
como é importante, numa sociedade igualitária, separar o que deve ter
limites do mandonismo ilimitado.
Aqui, destaca-se a discussão implícita, mas em curso, do que é, de
fato, servir ao governo. Não foram poucas as vezes que perguntamos aos
responsáveis pela máquina pública se, afinal de contas, os mais "altos
funcionários públicos" trabalham para si mesmos - como manda a ética do
"corporativismo" brasileiro que, no fundo, é uma ação entre amigos com o
consentimento legal do Estado - ou se eles trabalham para o Brasil.
Neste caso, é preciso tomar consciência que quando um sujeito vira
ministro, ele não tem mais vida privada quando se trata - obviamente -
de consultorias e outros trabalhos que configuram conflito de interesse.
Nesse ponto eu me pergunto se não precisamos de uma psicanálise
coletiva.
Na entrada de um ano-novo, vale uma pausa para pensar se vamos continuar assistindo à riqueza de todos ser desperdiçada ou seguir para o bolso de nossa aristocracia governamental e dos seus apaziguados. Esses "altos funcionários" que tudo sabem, tudo decidem e - aí está a chave no negócio - tomam um copo de vinho com quem comanda essa incrível máquina de produzir dinheiro sem aparentemente dar prejuízos a ninguém porque é um aparelho isento de responsabilidade. Máquina montada por uma elite escravista que realizou uma brutal internalização do seu espírito hierárquico e patrimonialista em todo o sistema. Esse espírito que até hoje nos isenta de culpa pelo que somos e pelo enorme descaso relativamente aos nossos próximos desiguais.
A igualdade cívica é um ideal. E, no entanto, a desigualdade é, no
Brasil, não apenas um fato histórico capital, mas é também - apesar de
alguns esforços - um valor. Temos altos funcionários e representantes do
povo que são intocáveis. Suspenda-se por um momento a norma da
hierarquia, instituindo uma corregedoria atuante em nível nacional e
temos uma crise no Judiciário que decorre da igualdade. Onde há
igualdade há conflito e, como consequência, ausência de bom-senso na sua
resolução. O "engavetamento" e a "prescrição", esses gêmeos do nosso
DNA legalístico forjado em Coimbra, conforme aprendi com José Murilo de
Carvalho, são o modo (ou o "jeitinho") de mostrar quem fala mais alto.
Em 2011 voltamos a ser atrapalhados não apenas pela economia, em que perdas e danos sempre existem e são - eis o ponto - relativamente impessoais, mas pelo Estado. Um Estado que continua personalizado e aristocratizante, insensível à racionalidade num mundo claramente preocupado com a suficiência e com a sustentabilidade.
* * * *
Registro, com pesar indizível, a morte de Daniel Piza que lia e
admirava. Envio a todos os seus próximos meu abraço solidário. Ninguém
deve morrer aos 41 anos. Mas assim corre o mundo e agora cabe a cada um
de nós honrar a sua busca, o seu amor aos livros, a sua inteligência e a
sua honestidade.
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