Roberto Damatta
Somos todos pescadores e, mais do que isso, pescadores à deriva. Perdidos e crentes naquilo que temos: água, luz, calor, motor, comida e aqueles abrigos dos quais os mais importantes dizem respeito ao pertencer a alguém ou a algum grupo, etnia, classe, país e sociedade do que a ser ou ter alguma coisa. É impressionante observar como nos sentimos seguros e salvos com tão pouco: uma reza, uma canção, um amor, um elogio, um ódio, um livro ou um copo d"água. Não existimos se não atuamos em algum teatro que nos informe sobre como ser e nos apresente um conjunto complicado e contraditório de papéis sociais - do nome de família e do clube de futebol - a coisas ainda mais abstratas, senão impossíveis, como ser completamente bom, honesto, forte, sensível, honrado e, para culminar uma enorme lista, viver tranquilo e feliz!
Como ser tudo isso e mais alguma coisa quando o tapete sobre o qual atuamos, nos é subtraído? E o drama se transforma porque somos obrigados a desempenhar papéis não planejados, esperados e desejados. Como diz o axioma de Shakespeare, o mundo é um palco e todos somos atores nesse drama para o qual não fomos convidados e no qual temos um momento de entrada e outro de saída que, para nossa angústia (e felicidade), não sabemos quando vai ocorrer.
* * *
Escrevo nesse tom porque esses dias têm marcado minha vida por passagens especiais. Da morte de um ex-presidente que honrou o liberalismo; dos desastres que deixam ver a mão sombria e cega do acaso. Tudo culminando, porém, com o resgate milagroso e, por isso, belo e redentor do humano dos seis pescadores capixabas que, depois de 21 dias à deriva e a 500 quilômetros de distância do seu ponto de partida, chegaram - notem - à "terra firme" para gozarem do reencontro com suas famílias.
Quem já viveu as duas situações, sabe bem o que é experimentar o sólido (da tal "terra firme") afundar na liquidez da morte súbita e da doença incurável. Melhor dizendo, das incertezas do viscoso - situado entre o sólido e o líquido -, que é uma figura mais adequada para as fantasias terríveis guardadas pelo não saber o que aconteceu com o filho, a esposa, o irmão ou o amigo - engolfados pelo mar imenso, pelo breu da noite e pelo frio da tempestade. Não morreram, Deus é grande! - diz um lado nosso. Estão mortos, não há esperança! - diz um outro. Quando não nos é dado saber se o lado que guarda a esperança é maior ou menor do que o desesperançado, chegamos aos limites do texto frequentemente simplório (e como poderia ser de outro modo?) que a família, a escola e o sistema nos infunde. Olha, guri, você cresce, fica forte, educa-se, casa-se, torna-se adulto, tem filhos, e um dia - depois de ter sido "feliz para sempre" - você (tranquilamente) morre...
Quando a dúvida do será que morreu ou sobreviveu bate na porta; quando somos assolados pela doença incurável que canibaliza o ser, sabemos que chegou a nossa hora. Momento de desesperar e tudo renegar? Momento de entrar em depressão e desistir de viver? Momento de se sentir traído pelos deuses e pelo tal de destino que só nos visita quando não é esperado?
Cada qual responde como pode. Uns agarram-se no outro mundo. Outros descobrem que a "nossa hora" é um áspero chamado para um renascimento. Para uma outra vida, com aqueles entes queridos dentro de nós.
De agora em diante, temos que viver o mundo com um pedaço de nossas biografias cortadas, feridas, mas paradoxalmente ampliadas. Com esses entes queridos dentro de nós, temos a obrigação de honrar suas memórias e de, eis o mais difícil, fazê-las viver através de nossas vidas, toda essa felicidade que, apesar de tudo, ainda pode ser encontrada.
Pois só os perdidos podem ser achados.
E se tudo correr bem, caros leitores, volto em agosto renovado por outras dúvidas e questões.
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