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terça-feira, 26 de julho de 2011

Nova York, 41 graus

 
Arnaldo Jabor
 
 
 
Estou em Nova York a 41 graus e, não sei por que, lembrei-me do Rio 40 graus em Ipanema. Aliás, sei, sim. No verão, Nova York parece uma praia sem mar; tem algo de posto 9 - onde se bronzeavam e se amavam os "baby boomers" que hoje elogiam o passado carioca, antes do golpe de 64. Lembro-me da frase que Bertolucci citou em seu primeiro filme (creio que de Talleyrand): "Quem não conheceu os dias de antes da Revolução, não sabe o que foi a alegria de viver".
 

É difícil explicar aos jovens de hoje que Ipanema era uma "praia com projeto". Dava-nos a sensação de que havia algo relevante em nossas vidas. Cada ato tinha um levíssimo sabor político. Eu me sentia ator de um tempo importante e achava que o Brasil seria no futuro uma "grande Ipanema", como o Tom Jobim costumava dizer. Nós nos achávamos no poder; um poder poético, romântico e, por isso mesmo, invencível.

A realidade era uma palavra abstrata. Ipanema era "modernista" e calma. Todo mundo se conhecia. Não éramos multidões vorazes e sem rosto. O ritmo da bossa nova descreve muito bem Ipanema. Tudo fazia parte de um conjunto harmônico, onde até a paisagem era feliz, feito a limpidez dos desenhos animados do Walt Disney. Era uma conjunção astral rara: os Beatles, o psicodelismo, a indústria nascente do "jovem", a revolução utópica.

Lembro-me das moças do Posto 9, na hora do poente, quando tudo parecia um oásis com camelos ao longe, palmeiras, e aquela bola dourada caindo sob o pregão dos vendedores de limonada. As mulheres mitológicas dos anos 60 foram solitárias precursoras. Ipanema foi uma revolução fêmea nos anos 60.

Os jovens de hoje são mais livres, mas perderam uma coisa maravilhosa que vivemos aos 20 anos: a repressão. Hoje os jovens ficam entediados de tanta oferta fácil, pois o sexo perdeu a aura de novidade. As meninas tinham pânico de engravidar e empacavam nas portas dos apartamentos. Fomos salvos pela pílula e as meninas passaram a dar. Mas ainda havia um perfume de pecado; o olho do superego paterno flutuava nos quartos - era um sexo com sabor de crime. E mais: sexo era um ato político; inaugurávamos um novo tempo, uma era de Aquário, nos cantos escuros, pois não havia motéis (só permitidos a partir de 67). O motel matou o encanto da tesão proibida.

Pensei em Ipanema, creio, porque Nova York é uma explosão de liberdade e sensualidade, com milhares de jovens lindos e lindas, de roupas leves, insinuando uma nudez que Ipanema cultivava, sem saber que logo viria o golpe militar para acabar com aquela revolução existencial feita pela pílula e pela moda do "socialismo tropical" de Jango.

Um dia, acordamos em Ipanema, e em vez de Leila Diniz, tínhamos o presidente Castello Branco, que parecia um ET de boné verde. E descobrimos que a praia era uma ilusão dentro de nossa cabeça.

Depois de 68, foi a praia com dor e com medo - porrada, polícia, piração. Nesse ano de horrores já havia indícios de um tempo terrível: a poeira das casas que caíam para construir os monstruosos edifícios de Sérgio Dourado que, com esse nome poético, destruiu um bairro inteiro, como um bombardeio.

Pensei em Ipanema e em meus 20 anos também porque sinto no ar (quem sou eu para profetizar?...) um clima de fim de festa, um clima de ingenuidade e alienação (como se dizia na época), diante de nuvens muito negras que se formam entre os prédios cada vez mais tortos do tempo atual (nossa pós-arquitetura evoca desmoronamentos).

Talvez a liberdade e juventude que vejo nas ruas de Nova York a 40 graus sejam cada vez mais poluídas pelas monstruosidades que estavam escondidas sob a capa da democracia liberal. A despreocupação consumista e a alacridade das ruas não combinam com o que lemos nos jornais e TVs. É possível que isso seja a "acidia" de um articulista melancólico, mas são assustadores os sintomas de horrores a caminho. Começando pela América, que está à beira de um apocalipse econômico autoprovocado, que pode começar dia 2 de agosto.

A ultradireita americana, os sórdidos republicanos fundamentalistas, topa assassinar o país com o calote da dívida interna para ferrar o Obama. Querem a todo custo impedir que ele, ao menos, tente consertar as pavorosas desgraças que eles próprios causaram no período Bush: as guerras inúteis de trilhões de dólares, o déficit público, as taxas cortadas para os ricos, a tolerância com Wall Street - tudo que hoje imputam ao governo de Obama. Os homens-bomba nasceram aos milhares, paridos pelos criminosos Bush e Dick Cheney, e o 11 de Setembro ainda ecoa em downtown no Ground Zero. Vamos ver se daqui a 7 dias a América vai cometer suicídio.

Mas não é só isso. Algumas frases do assassino da Noruega me impactaram como um prenúncio de tempos que já estamos vivendo, ainda inconscientemente. Ele disse: "Vem por aí uma carnificina que fará a Segunda Guerra Mundial parecer um piquenique". Além disso, ele falou que não considera seu ato como um crime. E concedeu: "Foi atroz, mas necessário...".

Os psicopatas têm sensibilidade histórica. Eles são a vanguarda do crescimento galopante de uma nova ultradireita, já visível no suicídio que se prepara na América, no fim do multiculturalismo, no progressivo crescimento de Le Pen na França, nas chacinas do México, sem falar no diários massacres do Oriente Médio.

E mais que isso; creio que há um desejo de sangue. Sim; há uma fome nascente por uma grande tragédia que termine de uma vez por todas com a "tolerante, insuportável democracia" que, no fundo, a estupidez humana detesta.

O desejo pela tragédia (essa coisa concreta, sólida, genuína) já não é apenas o sonho de islâmicos loucos; o Ocidente almeja por sangue também.

Por isso, passeando pela felicidade consumista de Nova York, penso na alegria ingênua de Ipanema em 31 de março de 1964.


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