Eugênio Bucci
"A virtude
ostentada converte-se em seu contrário. Quem ostenta a própria caridade
ressente-se da falta de caridade. Quem ostenta a própria inteligência é
geralmente um estúpido" (Norberto Bobbio)
"Você pode não acreditar em Deus, mas Deus acredita em
você." O jornalista Humberto Pereira talvez procurasse animar seu grande
amigo, internado no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, quando, sem exibir procuração
para tanto, lhe transmitiu os votos de confiança de Deus, ninguém menos que
Deus. O amigo, o também jornalista Sidnei Basile, não demonstrou emoção:
"É o quanto basta".
Tinha câncer no cérebro. Sabia que estava condenado. Com a discrição
que era sua marca registrada, há de ter avaliado que aquele não era um bom
momento para colóquios teológicos.
Recebeu com sobriedade o recado e pôs um ponto final na história. Com palavras
econômicas.
Na quinta-feira passada, ao lado do caixão do amigo, no Cemitério
Gethsêmani, o mesmo Humberto Pereira fez um discurso de despedida e reproduziu
essa conversa, que é bastante reveladora. Por meio dela temos uma ideia fiel do
caráter e da inteligência espirituosa desse que foi um dos maiores jornalistas
econômicos do Brasil - e um dos homens mais dignos que conheci. Sidnei tinha
muitas virtudes, mas não ostentava nenhuma. Não pedia comiseração a ninguém,
nem mesmo a Deus.
Em vez disso, promovia gente. Nas redações da Gazeta Mercantil e da
revista Exame, que dirigiu, notabilizou-se por ensinar jornalismo e por
melhorar os profissionais que chefiou. Escutava os subordinados. Sabia
identificar neles o que tinham de mais brilhante. Não foram poucos os que
cresceram e prosperaram sob sua orientação. Sidnei foi um civilizador, um
profissional que elevava os padrões de conduta e de convivência nos ambientes
por onde passou. O posto que exerceu no final de sua carreira, o de
vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Abril, veio para ele como
um passo natural. Sua aptidão para construir pontes de entendimento, com base
no que chamava de comunicação de boa-fé, fez dele um articulador de diálogos de
alto nível. Conhecia e cultivava os valores e as melhores práticas da imprensa
- seu livro Elementos do Jornalismo Econômico, que ele pretendia atualizar, é
uma prova disso - e, ao mesmo tempo, conhecia muito bem o mercado e as
instituições do País. Advogado pelo Largo de São Francisco e também formado em
Ciências Sociais pela USP, foi interlocutor de magistrados, ministros, parlamentares
e presidentes, que viram nele, bem mais que o representante de uma empresa ou
de uma organização, um defensor da liberdade, alguém a serviço da democracia e
do público. Era assim mesmo: a respeitabilidade que ele conquistou em vida, em
esferas diversas, eu a registro aqui como um fato notório, não como opinião
pessoal.
Sidnei não contava, e não gostava que contassem, mas enfrentou a
repressão política durante a ditadura militar e sofreu no corpo a brutalidade
do regime. Nunca se vangloriou nem reclamou de nada disso. Apenas seguiu
adiante. A liberdade pela qual se empenhou naqueles anos é a mesma liberdade
que trabalhou para expandir agora, quando se opôs aos defensores de medidas que
poderiam redundar em formas oblíquas de cerceamento do direito à informação.
Com sua voz calma, que transmitia serenidade e quase doçura, com seus modos
contidos, com a delicadeza de quem se divertia por ter desenhado um móvel
especial para ler o jornal toda manhã (uma prancha de madeira com uma
inclinação de uns 40 graus), com o capricho dedicado de um criador de ovelhas,
sobre as quais editou uma revista com receitas ilustradas testadas, e muito bem
testadas (o cidadão sabia cozinhar), era um viabilizador de aproximações, as
mais difíceis, para as quais servia como uma garantia de que não haveria
rebaixamento ou degradação de nenhum lado. Assim como juntava pessoas,
conciliava propósitos e projetos diferentes, sem descaracterizar ou diminuir
nenhum deles. Com ele por perto a gente sentia que as coisas caminhariam bem.
Aos muitos conselhos e entidades de classe, nacionais e
internacionais, a que pertenceu Sidnei fará uma falta silenciosa, difícil de
traduzir. As pontes de diálogo que ele abriu ficam órfãs. Sua ausência será
sentida, principalmente, quando for necessária a temperança, quando for preciso
desarmar espíritos em prol de consensos mínimos, sem os quais se alastram os
estranhamentos.
Tudo isso porque da serenidade extraiu sua força. Num pequeno livro,
Elogio da Serenidade, Norberto Bobbio discorre sobre essa virtude. "Acima
de tudo, a serenidade é o contrário da arrogância, entendida como opinião
exagerada sobre os próprios méritos, que justifica a prepotência", escreve
o pensador italiano. "O indivíduo sereno não tem grande opinião sobre si
mesmo, não porque se desestime, mas porque é mais propenso a acreditar nas
misérias que na grandeza do homem, e se vê como um homem igual a todos os
demais." Parece uma contradição, mas, exatamente por não ter nenhuma queda
pelas grandezas vistosas, Sidnei inspirava tanta confiança.
Inspirava boa-fé. Entre redações que acreditam em valentias tribais,
fustigando os que divergem para intimidá-los, e políticos que se comprazem em
se refugiar na censura judicial, como nos falta boa-fé. Como nos falta a
serenidade. Poucos sabem disso, mas aqui vai outro fato: sem Sidnei Basile a
rotina da imprensa e de parte das nossas instituições fica um pouco mais
penosa.
Por um bom tempo vou-me lembrar dele sorrindo, em sua cama de
hospital, olhando para as fotos da família que mandou pregar na parede. Não era
só Deus, não. Muitos de nós acreditávamos em Sidnei Basile. "É o que
basta", ele diria, incomodado com o que tomaria como elogios. Mas não
bastou, nem basta. Ele morreu aos 64 anos de idade.
Foi uma bela vida, mas ainda era cedo.
JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM
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