José Nêumanne
Cabe a Supremo tirar dúvidas para que cidadão possa decidir seu voto com segurança
É definitivamente lamentável que a onda de indignação despertada na sociedade brasileira pela votação do Supremo Tribunal Federal (STF) que adiou a vigência da Lei da Ficha Limpa para a eleição de 2012 não passe de um tsunami cívico inócuo. Pois não produzirá efeitos nem contra a corrupção do serviço público nem no fortalecimento da democracia.
Cai no vazio por dois motivos básicos e óbvios: a causa não é sólida e a mobilização é festiva e efervescente. Se esse tipo de ira coletiva se manifestasse na rejeição a outros malfeitos dos homens públicos, ele seria mais nobre, mais útil e mais efetivo. Desafinando mais uma vez o coro dos descontentes, aqui proponho uma reflexão retrospectiva e aprofundada para chegar à autêntica raiz de nossos problemas institucionais. E destes, mais grave do que a improbidade administrativa – que a lei condena, mas não alcança – é a impunidade generalizada.
O prestígio e a ineficácia da Lei da Ficha Limpa são frutos dos mesmos enganos. Um deles foi a tentação de tentar tornar a Constituição a panaceia universal, capaz de resolver as distorções sociais e curar as doenças crônicas de nossa organização política. Se se contém um paradoxo numa frase curta – do tipo “a lei é dura, mas é lei” –, o que dizer, então, da enxúndia produzida pelos constituintes ansiosos em corrigir a História do Brasil com boas intenções, que, como lembrava minha arguta avó, sempre terminam debaixo de sete palmos de terra em algum cemitério – daqueles que João Cabral retratou em seus poemas?
A Constituição de 1988 consagra, é claro, o princípio da probidade administrativa. Tal seria se não o celebrasse! Mas, ao mesmo tempo, garante a qualquer cidadão acusado de violá-lo o direito de se defender plenamente, o que implica uma plêiade de recursos, que, por sua vez, legitimam um sem-fim de chicanas e gambiarras. São tão complexas as engrenagens do Direito no Estado democrático que o fazem mover-se em direções opostas, tornando permanentemente necessária a interpretação de um Poder republicano, o Judiciário, para que a máquina não pare de funcionar. Um dispositivo constitucional obriga o mandatário público a ser honesto. Outro, logo adiante, lhe assegura o direito de percorrer os labirintos dos escaninhos da Justiça para ter sua eventual infração punida.
Falso, enganoso e nocivo pode ser o resultado final da tentativa de criar atalhos nesses caminhos tortuosos. Um dos enganos mais comuns resultantes dessa tentativa de atenuar a subida ao patíbulo foi cometido pelos constituintes quando venderam à sociedade a mentira sutil de que milhões de assinaturas de cidadãos comuns teriam mais legitimidade – e, portanto, mais força – do que as iniciativas rotineiras dos representantes escolhidos pela maioria do eleitorado. Na democracia representativa, a representação não deve ser trocada pela intervenção direta do representado. Um abaixo-assinado não pode substituir o exercício máximo de poder do povo, que é escolher seu representante diante da máquina de votar. Por isso, mesmo tendo cedido ao senso comum de aceitar as iniciativas ditas populares na atividade legislativa, os constituintes não tiveram como retirar do legislador a palavra final de aprovar, ou não, a proposta do eleitor que não se elegeu.
A Lei da Ficha Limpa não é melhor do que as outras só por ter sido originada numa mobilização popular e avalizada por milhões de assinaturas de pessoas que não legislam diretamente, mas o fazem de maneira indireta pela voz de representantes por elas escolhidas nas urnas. Ao contrário, como resulta de um benemérito, mas superficial, desejo de extinguir a corrupção, o que não pode ser feito por uma penada, consolidou uma série de providências de aparência sedutora, mas perigosas na vigência. Em suma, a lei é ambiciosa e mal feita, uma mistura fatídica de vontade de fazer o bem não importando a quem atingir.
É necessário o primado da probidade para o exercício do poder público, mas não convém sobrepô-lo a outros direitos da cidadania. Por exemplo: ninguém aceitaria que agora, no meio do campeonato estadual, a Federação Paulista de Futebol substituísse a fórmula que adotou (de um octogonal decisivo) para definir o campeão pelo sistema de pontos corridos, empregado no Brasileirão. Não se trata de decidir qual é o melhor sistema. Trata-se, isso sim, de partir do pressuposto insubstituível de não mudar uma regra no meio da competição. Se isso vale num torneio esportivo, como não valeria na mais importante disputa cívica, o processo em que o cidadão indica quem legislará e quem governará? Portanto, se o STF fez mal ao permitir que, em 2010, o eleitor votasse sem saber se poderia, ou não, eleger certo candidato, deixando em aberto a decisão sobre a validade da Lei da Ficha Limpa na eleição do ano passado, agiu bem ao dar primazia ao conceito da regra que não pode ser mudada e ao respeito à decisão do eleitor, no exercício do soberano direito de escolher quem o representa.
Agora a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) defende a necessidade de o STF se pronunciar de vez sobre dois pilares do Estado Democrático de Direito ameaçados pela pressa com que o abaixo-assinado dos faxineiros da República foi tornado lei pelos representantes do povo.
Um deles é o princípio de que nenhuma norma legal pode retroagir. A Justiça precisa, de fato, dizer ao eleitor se este terá garantido o direito, nos próximos pleitos, de votar em alguém que tenha sido condenado por improbidade antes da promulgação da lei, em 2009.
Outra questão fundamental a ser avaliada pela última instância judiciária é a negação pela Lei da Ficha Limpa da presunção de inocência concedida a quem não houver tido a condenação passada em julgado, ou seja, reconhecida em todas as instâncias do Poder Judiciário. Aqui está em jogo o célebre conceito da dúvida a favor do réu (in dubio pro reo). A obrigação do STF é dirimir a questão antes de o eleitor ter de tomar a decisão.
Jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde.
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