A Lei
Complementar nº 135/2010, apelidada Ficha Limpa é uma norma de preceito
(direito material), que estabelece pressupostos para eventuais candidaturas ao
respectivo processo eleitoral, mas com este não se confundindo substancialmente;
não se trata, pois, de norma de processo, ainda a eclodir da composição das
candidaturas elegíveis na fase anterior ao processo eleitoral propriamente
dito. Por isso mesmo, do ponto de vista técnico, aplica-se desde logo, certo,
além do mais, que nela não se cogita tampouco de regra penal ou disciplinar
para cuja eficácia a teoria jurídica exige anterioridade aos fatos nela
idealizados, prefigurados legalmente. Se uma lei complementar restaurasse, por
exemplo, a idade mínima para o exercício do direito de voto aos 18 anos
(direito material), aplicar-se-lhe-ia a regra intertemporal do Art. 16 da
Constituição Federal, para fins de eficácia? Parece evidente que uma resposta
negativa se impõe a tal proposição, excepcional da regra introdutória do Art. 6º
do Decreto-lei 4.657/1942 (LINDB), semelhante ou análoga àquela cogitada pela lei
dos “ficha-limpa”, porque se trata de normas de genealogias distintas,
topografias destacadas e finalidades diversas.
A volta dos que não foram na viagem imaginária dos
“ficha-limpa”, surpreende somente aqueles que não conhecem o Judiciário
Nacional, a vida nos seus bastidores e tampouco se dão conta dos buracos negros
criados constitucionalmente para formar as suas composições: supremo paradoxo
democrático consistente na autossuficiência na democracia dos administradores e
no silêncio na democracia dos “iguais”!
Estamos muito mal, e já não é de hoje. A única
novidade prodigiosa que temos, sem dúvida, no âmbito do Poder Judiciário
brasileiro hodierno, tão emperrado, seletivo e kafkiano, como sempre, são as
Listas de Discussão de Magistrados. O resto é mais do mesmo...
Dois pontos, em termos acadêmicos, para se tentar
compreender o quadro, seus rumos e aqueles que ele não tomou:
Político: A vontade escravizada vale tanto quanto a
escravidão que a suscita. Vive-se uma democracia, embora cheia de concessões ao
atavismo político e às obtusidades jurídicas como quando se concebe do modo de
como são pinçadas e formadas as composições da Suprema Corte, ou seja, de forma
inteiramente política, relacional, nada técnica e meritória apenas por
circunstância. Falando em coincidência, a vaga do desempatador pode ter sido
exigência do PMDB (diz a imprensa que o vice-presidente Michel Temer
expressamente ressalvou a aliança em curso com o PT, justificativa da ocupação
de cargos da República para rechaçar as acusações de fisiologismo do partido) e
pelas mãos de um legítimo representante dessa mesma agremiação
político-partidária (Sérgio Cabral, governador do Rio de Janeiro) foi
catapultado, eleito e festejado também pela comunidade judicial (Associações de
Classe), eis que também era Juiz e até fez carta pública de adesão aos melhores
fluidos sociais que embalaram o PT quando ainda não era governo, cuja história
sempre se evoca como uma espécie de trunfo. Mas, o melhor da história é o seu
resultado, que acabou beneficiando, entre outros, o mais emblemático pemedebista
da história recente do País, Jáder Barbalho, o grande vitorioso da cena
política do momento.
Jurídico: Não parece ser inteiramente correto dizer
que a decisão do Supremo no caso dos "ficha-limpa" atendeu à
constitucionalidade da matéria. De fato, o busílis do problema que não existiu
consistia em descrever fielmente a natureza jurídica da consequência principal
derivada da aplicação da nova lei, ou seja, inelegibilidade, em função do que se
poderia adequadamente cogitar de sua incidência atual ou remota.
Administrou-se, acredita-se, arbitrariamente, o fato como sendo penalidade,
razão pela qual não se houve aplicada para o andante (recém-findo) processo
eleitoral, entendido como a fase que compreende o início, a realização e o
encerramento da votação, além da proclamação dos resultados e da diplomação dos
eleitos. Acontece que a Lei da Ficha Limpa não estabelece nenhuma imputação
objetiva ou sugerida aos candidatos, constituídos como tais em uma fase
pré-processual diversa do processo eleitoral propriamente dito, senão
exige-lhes condição de candidatar-se e de elegibilidade, portanto. Trata-se de
pressuposto à inscrição e ao registro eleitoral corresponde. Ora, não se
tratando de pena ou de consequência jurídica para supostas ilicitudes pendentes
de solução definitiva, mas tão somente de cláusula de acesso, pressuposto de
validade de candidaturas eleitorais, não há motivo jurídico bastante a impedir
sua incidência desde logo. Além do mais, o próprio STF já regulou que não prevalece
a tese de aplicação do Art. 16 da Constituição Federal, cuidando-se de
disciplina mencionada no seu Art. 14, § 9º, para completar o regime
constitucional de inelegibilidades, como ressalta exatamente da hipótese da Lei
Complementar nº 135/2010 (cf., Recurso Extraordinário nº 129.392, Rel. Min.
Sepúlveda Pertence, DJ de 16/04/1993). Como visto, a decisão, a par de seus
belos consideranda, quase
envergonhada em face da grita da Nação petrificada pelos horrores da corrupção,
acabou fecundada em lastro de hermenêutica arbitrária, extensiva, por isso
ilegal. Sucede, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal é, no País, o órgão
que erra por último, circunstância que propicia a festa de quem não merecia
voto algum!
Isso tudo demonstra, ao fim, que o que está posto em
termos legais no País não é pressuposto de efetivação alguma. Vivemos à deriva
não apenas de paradigmas jurídicos, mas de identidade. É por isso que pessoas e
grupos teimam em mandar uns nos outros sem observar, por vezes, viés algum de
racionalidade, no sentido de Aulis Aarnio (o racional como razoável). Com isso,
retroalimentam a bagunça geral estabelecida numa sociedade sem paradigmas,
marca essencial da alopoiese que, no âmbito do Estado, favorece somente aos
supercidadãos e aos superpoderosos.
*"A alopoiese é um processo pelo qual uma
determinada organização produz algo diferente de sua própria organização.
Luiz M. Leitão da Cunha é jornalista (SRTE 57952) luizmleitao@gmail.com
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