Numa época em que, mais do que nunca, procura-se levar vantagem e viver à custa do suor alheio, como se vê no epísódio corrente das aposentadorias vitalícias de ex-governadores, alguns dos quais ocuparam o cargo por alguns meses, o artigo abaixo, publicado no Estadão de ontem, 29/1/11, precisa ser divulgado aos quatro ventos.
É por isso que reproduzo aqui o texto de Marcos Caetano, que relata um raríssimo exemplo de decência, coerência e honestidade. Viver custa caro, demanda dar muito de si, e para muitos, significa ir praticamente além das próprias forças.
Ao leitor estrangeiro, de Portugal, aos lusófonos de África e alhures, é preciso fazer um parêntese: A Constituição do Brasil é uma belíssima carta de intenções, mas está longe de se demonstrar um escrito verdadeiro.
A igualdade de todos perante a lei e de direitos nunca existiu de fato, nem antes dessa Constituição de 1988, nem depois dela.
O senador gaúcho Pedro Simon (PMDB-RS, ex-governador do Estado do Rio Grande do Sul) teve a pachorra de declarar que viver com 11 mil reais (pouco mais de 6 mil dólares) não dá. Se fosse ele sozinho, ainda talvez desse, mas com mulher e filhos, é impossível. Uma fala dessas num país de miseráveis, onde o salário mínimo vale R$ 540, ou cerca de US$ 317, é bem mais que uma afronta.
Como pode querer receber como governador pelo resto da vida, se contribuiu como tal durante 4 ou 8 anos, nos casos de eleição e reeleição, ou menos, no caso dos que ocupam o cargo provisoriamente?
Agora, vejam o exemplo abaixo. E como a educação se dá muito por meio dos exemplos, dei este artigo ao meu filho, de 14 anos, para ele ler.
Título original: O fim dos princípios
MARCOS CAETANO
João Moreira Salles, editor da prestigiosa revista Piauí - na qual publico uns textos de humor para tirar folga da rotina esportiva -, enviou-me uma notícia do The New York Times da última quarta-feira. Era sobre beisebol e, apesar disso, a mensagem do amigo dizia que o assunto poderia servir para a minha crônica semanal.
Beisebol? Não era possível. Não há nada no beisebol que eu possa publicar aqui na coluna, mesmo nestes tempos de estaduais modorrentos e de Libertadores em fase de pré-vestibular. Mas o título da matéria era suficientemente interessante para captar minha atenção: "Arremessador abre mão de US$ 12 milhões para manter o autorrespeito"".
Em tempos nos quais as pessoas não abrem mão de um centavo por nada, a história de um sujeito que abre mão de US$ 12 milhões por autorrespeito é algo que flerta com o bizarro. Quase tanto quanto esse autorrespeito com dois erres, segundo a nova ortografia.
Assinado pelo jornalista Tyler Kepner, a reportagem conta a história de Gil Meche, arremessador de 32 anos do Kansas City Royals, equipe da Major League Baseball, a poderosa divisão de elite do esporte, nos Estados Unidos. Depois de anos executando a excruciante tarefa de arremessar violentamente centenas de bolas a cada partida, o ombro direito de Meche desenvolveu uma contusão crônica, que o impediu de atuar em boa parte das partidas da última temporada.
Por várias vezes tentou voltar, mas a dor o impedia. Restava a opção da cirurgia, cujas chances de sucesso não eram claras. Há quatro anos, o atleta assinou acordo de cinco temporadas com o Royals, ou seja, lhe restava um ano de contrato. E esse ano equivalia a nada menos do que US$ 12 milhões. Percebendo que não poderia mais render para o time e sem vislumbrar chances de recuperação com a cirurgia, Meche não realizou o procedimento, não se apresentou para a pré-temporada e, em vez disso, anunciou sua aposentadoria, abrindo mão do restante do contrato a que tinha direito.
"Quando eu assinei o contrato, meu objetivo era fazer por merecê-lo", disse o arremessador. "Quando percebi que não estava merecendo o dinheiro que ganhava, me senti mal. Eu estava ganhando uma quantidade insana de dinheiro para nem sequer arremessar. Honestamente, eu não achava que merecia. O clube já havia contribuído com mais de US$ 40 milhões para minha vida e para a vida dos meus filhos, e eu simplesmente não achava justo cobrar o resto do contrato."" Qualquer outro atleta teria feito o que [nem] sequer é eticamente reprovável pelas práticas do esporte: encarar a cirurgia, passar o ano em recuperação e receber o valor do contrato. Mas Gil Meche não é, definitivamente, qualquer outro atleta. E o fato de o episódio ter se passado nos Estados Unidos, terra que sabe como poucas fazer valer um contrato até o último centavo, o torna ainda mais extraordinário. Nos esportes americanos, apenas casos de contusões fora de campo, causadas por atitudes irresponsáveis dos atletas, ou problemas gravíssimos de má conduta podem levar ao cancelamento de um contrato vigente. E, mesmo em situações assim, pouquíssimas vezes os contratos são efetivamente rescindidos.
Ao ler essa história e recordar tantos e tantos jogadores de futebol que recebem fortunas para atuar uma ou duas vezes por mês - e alguns atuam uma ou duas vezes por ano - fiquei, mais uma vez, escandalizado. Nada contra os veteranos que continuam suando a camisa, como Rivaldo, que agora retorna ao São Paulo. Mas acho que aqueles jogadores, muitos nem tão veteranos assim, que não estão nem aí para os clubes que investiram fortunas no sonho de tê-los como ídolos e acabaram convivendo com meros "chinelistas profissionais"", deveriam tentar refletir um pouco sobre a dignidade de Gil Meche. Não estou falando de amor à camisa, pois isso ficou no passado, mas de amor ao próprio legado, à própria imagem, valores que são, ou deveriam ser, eternos.
Vivemos tempos que parecem representar o fim dos princípios. Mas o valoroso ato de Gil Meche talvez - talvez, apenas - possa marcar um novo começo.
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