Roberto Damatta
A expressão, embora técnica, é definitivamente poética. Remete tanto a um momento quanto a um processo, essas dimensões típicas do humano tanto na sua imprevisibilidade que nos faz voar, quanto na sua estabelecida tonelagem que nos ata a este mundo. Todos passamos e viver é transitar sofrendo ou exultando por meio das etiquetas e das fórmulas que recebemos das sociedades e famílias onde entramos sem convite ou escolha. Assim, ritualizamos tanto o nascimento quanto a morte; bem como todos os momentos críticos de nossas vidas. Felizmente, por mais que o tempo passe, haverá sempre uma primeira e uma última vez.
O descobridor dessa fundamental platitude não foi nenhum gênio da publicidade, mas um antropólogo chamado Arnold Van Gennep. Foi ele que num livrinho com esse título, publicado em 1909 (divulgamos essa obra no Brasil em 1978, numa coleção que dirigimos com o Prof. Luiz de Castro Faria), enxergou o padrão dos ritos de crise de vida individuais ou coletivos, que sempre e em toda época ou lugar, seguem os mesmos princípios. O primeiro é que, embora eventualmente ligados a processos fisiológicos, eles são de fato ideológica (ou socialmente) definidos; o segundo é que são sempre dramatizados e, assim, compartimentalizados em algum palco ou local onde devem ignorados ou obrigatoriamente ser vistos por todos; e, finalmente, o terceiro, é que todos eles têm uma fase de separação (que remove a pessoa ou o objeto do seu campo habitual); uma fase limite ou fronteiriça, onde não se está na velha posição social nem fora dela; e uma fase final de incorporação no novo papel, ambiente ou momento.
Ora, é exatamente isso que todos nós temos feito nesse período de festas. Fase inaugural de uma estação de consumo obrigatório que culmina no ano-novo, porque Papai Noel tem que encher o seu enorme saco de brinquedos e nós a nós mesmos e aos nossos próximos de "lembranças". Tal período termina no carnaval e se você quiser fazer alguma coisa séria nesta época, você vai ouvir um brasileiríssimo e preguiçoso: "Isso só depois do carnaval!"
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Cada qual sai do ano velho e entra no novo com um rito de passagem peculiar. Conheço gente que toma banho de cheiro, outros que bebem e comem desbragadamente. Meu saudoso pai dava tiros de revólver para o ar; um amigo, antropólogo estruturalista, batia tampas de panela; outros comem lentilhas (símbolos de fartura) pela meia-noite. Dizem que quem faz algo bom na virada do ano, repete essa coisa o ano todo. Ademais, no Brasil, somos arregimentados a nos vestir de branco e ir à praia, onde fazemos um ano morrer e dele partejamos um tempo novo.
Neste Natal eu, modesto, fui ao barbeiro.
Como vocês sabem, o barbeiro é a prova mais patente e gritante de como nós precisamos do outro e somos feitos pelos outros. É o testemunho que não podemos nos enxergar dormindo do mesmo modo que estamos impedidos - a não ser usando algum instrumento - de ver nossas próprias nucas, costas e traseiros. A nossa proverbial lateralidade (esquerda/direita, alto/baixo, frente/fundo, fora/dentro) não nos permite coçar nossas costas. Precisamos de outras mãos e a coceirinha gostosa, mas irremediável, pode ser prova de terrível solidão.
Tudo isso faz com que o barbeiro seja a primeira e talvez a mais fundamental experiência de alteridade, pois ninguém corta - como sabem melhor do que ninguém os indianos - o seu próprio cabelo a ser trabalhado por um outro que nos vê pelas costas sem, entretanto, nos mandar embora ou nos desprezar.
- O que deseja?
- Qual?
- Como?
- Sim, meu senhor, que cabelo?
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Um querido amigo me deve, por conta de um outro rito de passagem, o eleitoral - que seria vencido no primeiro turno e por larga margem pela candidata petista, hoje a primeira presidente mulher da nossa história, duas garrafas de uísque John Walker Blue Label. Mas até agora eu, de azul, só vi o céu, como naquela belíssima música de Irving Berlin. Blue skies/Smiling at me/Nothing but blue skies/ Do I see...
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Estamos também transitando de governo, mas mantendo a tradição de Lula. Como teria reagido um feroz e oposicionista PT diante da proibição de uma greve no governo FHC? Salve a neomendacidade política lulista que talvez seja o sintoma mais flagrante de que transitamos para um meio-termo efetivamente burguês, iluminado pelo bom senso dos interesses próximos e, queira Deus, dos distantes também.
Aliás, a César o que é de César: o governador Sérgio Cabral falou franca, corajosa e abertamente de dois temas que temos que discutir e não podemos mais marginalizar: o aborto e o jogo como parte da bagagem da liberdade englobada pela cidadania republicana. Não sou favorável a nenhum descontrole, sei da gravidade e das contradições implicadas, mas penso que se pode estabelecer controles, sem os quais seria impensável diminuir ou limitar o hedonismo desabrido que conduz ao consumo de drogas, à dissipação pela jogatina e ao crime.
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Finalmente, aproveito a oportunidade para desejar ao leitor um feliz ano-novo. Viva os bons momentos produzidos pelas festas. Aproveite essa brecha de alegria e despreocupação que a figura da Sagrada Família e dos Reis Magos, com seus inefáveis presentes, exemplificam. O sofrimento é permanente, mas ele é a maior prova de que o amor existe.
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