Xote, maracatu e baião
Mais do que a tríade que deu luz ao Nordeste, Gonzagão desenhou uma cultura, como mostra novo livro de Bené Fonteles.
O inventor do sertão
José Nêumanne
Rei do Baião? Mais. Luiz Gonzaga foi além de todos os seus pares ao criar a estética de um povo que não tinha voz
Saiba que lá pelos anos 60 do século passado a Música Popular Brasileira, dita MPB, vivia à mercê da guerra da turma do tamborim contra a patota da guitarra elétrica. Então, o pernambucano Luiz Gonzaga (homônimo do santo) do Nascimento (sobrenome inventado para comemorar a proximidade do aniversário dele com o Natal) foi despejado para o ostracismo total. Aí, emergiu das sombras a ruidosa figura do roqueiro capixaba Carlos Imperial e propagou a boa nova: “Os Beatles gravaram Asa Branca”. Era mentira. Mas o gordo da Corte havia proferido uma sacada genial: o mulato da Chapada do Araripe não era um compositor e cantor à altura de John Lennon e Paul McCartney. Mas, como os quatro fabulosos garotos de Liverpool, ele tinha fundado uma estética, inaugurado uma cultura. Os quatro cavaleiros do Império Britânico foram muito além do universo dos rouxinóis e viraram o Ocidente todo de pernas para o ar. E o sanfoneiro do Exu inventou a cultura regional nordestina.
Para esta constatação chama a atenção um livro que reúne ensaios em prosa, fotos e xilogravuras encomendados, reunidos e coletados pelo artista plástico, poeta, compositor e curador de exposições paraense Bené Fonteles: O Rei e o Baião. No luxuoso e belíssimo volume editado pela Fundação Athos Bulcão, de Brasília, e financiado pelo Ministério da Cultura não faltam excelentes textos de autores do naipe do compositor e cantor baiano Gilberto Gil, da professora cearense Elba Braga Ramalho, do poeta baiano Antônio Risério, do antropólogo paraibano Hermano Vianna, do radialista e escritor cearense Gilmar de Carvalho, da pesquisadora cearense Sulamita Vieira e do próprio organizador. Mas o que há de mais notável na coletânea é a parte visual, a cargo do fotógrafo paraibano Gustavo Moura e dos xilogravadores cearenses João Pedro do Juazeiro, José Lourenço e Francorli e Carmem, além da “Iconografia Gonzagueana” com imagens cedidas pelos arquivos do Museu Cearense de Comunicação de Nirez, em Fortaleza (CE), Museu do Gonzagão, em Exu (PE), Museu Fonográfico Luiz Gonzaga, em Campina Grande (PB), Memorial Luiz Gonzaga, em Recife (PE), Paulo Vanderley Tomaz e Iolanda Dantas.
Todos eles contribuíram para uma visão multidisciplinar completa do Rei do Baião, que, falecido há 21 anos, ainda é venerado como o símbolo vivo da diáspora nordestina espalhada pelo Brasil por conta do êxodo forçado pelas secas. Seu cetro se explica de certa forma pela frase-síntese do maior folclorista brasileiro, o potiguar Luís da Câmara Cascudo: “O sertão é ele”. Mas isto é só o ponto de partida.
A entronização de Lua se deve ao fato de ele ter incorporado a cultura rural sertaneja à indústria cultural urbana. Por isso, dele só se aproxima em importância na história de nosso cancioneiro a geração de sambistas cariocas dos anos 30, aos quais se juntou o mineiro Ary Barroso. Como os precursores do maior espetáculo do mundo - o desfile das escolas de samba do Rio -, Gonzagão inspirou as festas de São João introduzidas no calendário nacional: ao criar o primeiro trio com sanfona, zabumba e triângulo, ele instaurou a música regional nordestina, introduziu ao mercado de trabalho a atividade de instrumentista e intérprete oriundo do sertão e interferiu na indústria cultural com uma nova modalidade.
Quem folheia o livro da Athos Bulcão compreenderá, pela visão do conjunto da obra, que Gonzaga não virou Rei pelas canções que compôs. Aliás, o uso deste verbo é controverso, pois, na verdade, mais do que compor ele adaptou temas ouvidos nas brenhas de origem ou atravessou em parcerias com autores interessados em obter seu aval de sucesso garantido. Mas, sim, por mercê da sintonia mágica com seus dois talentosos parceiros iniciais, o advogado cearense Humberto Teixeira e o folclorista pernambucano Zé Dantas, e da indumentária típica que inventou para se apresentar: gibão de vaqueiro e chapéu de cangaceiro. E mais ainda pela intuição genial que demonstrou ao transformar a fortuna melódica do cancioneiro dos cafundós sertanejos em gêneros musicais e ritmos de dança que, só por causa dele, encantam e mobilizam o público, além de produzir sucesso e fortuna para compositores e intérpretes no rádio, depois na televisão e nos salões de festa. Jackson do Pandeiro, Marinês, Antônio Barros e Cecéu, Genival Lacerda, Flávio José, Santanna Cantador e outros grandes autores e cantores de origem nordestina não teriam exercido seu talento nem viveriam dos frutos dele se o filho de Januário não houvesse tirado dos baixos de sua sanfona o baião, o forró, o arrasta-pé e outros ritmos do Semiárido.
O livro organizado por Fonteles deixa isso claro. Pena é que nele tenham sido omitidas informações sobre os autores de textos, xilogravuras e fotografias exibidos ao público com beleza e bom gosto. O leitor merecia saber quem constatou que Luiz Gonzaga foi muito mais do que o Rei do Baião e o autor e intérprete de canções clássicas (como o hino do sertão, Asa Branca): foi o semideus que criou o Nordeste Musical Brasileiro.
Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde, é curador literário do Instituto do Imaginário do Povo Brasileiro.
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