Impossível deixar de reproduzir aqui este texto, que reflete tão bem as contradições da nossa desumana humanidade.
KWAME ANTHONY APPIAH
Olhando para os EUA, país onde vive, o filósofo levanta questões sobre a devastação do planeta que transcendem fronteiras.
Antigamente, quase em toda parte, surrar a mulher e os filhos era considerado dever do pai; homossexualismo era uma ofensa punível com forca ; e a simulação de afogamento – na verdade, inventada – pela Igreja católica.
Até meados do século 19, os EUA e outros países americanos toleravam a escravidão. Muitos de nossos avós nasceram em Estados onde as mulheres não tinham o direito de votar. E quando o século 20 já ia bem avançado, turbas descontroladas despiram, enforcaram e queimaram seres humanos em piqueniques.
Olhando para esses horrores do passado, é fácil perguntar o que as pessoas estavam pensando? Há boas chances de que nossos descendentes farão a mesma pergunta, com mesma perplexidade, sobre as nossas práticas atuais. Quais?
Um olhar sobre o passado sugere três sinais de quando uma determinada política está destinada à sua condenação futura.
Primeiro, quando as pessoas já ouviram argumentos contra determinada prática. A campanha contra a escravidão não surgiu de um momento iluminador de clareza moral, por exemplo, até porque ele se estendeu por séculos. Segundo, os defensores de certos costumes tendem a não oferecer contra-argumentos morais, mas a invocar a tradição, a natureza humana ou a necessidade (com argumentos do tipo “sempre tivemos escravos, como plantaríamos algodão?”). E, terceiro, os defensores de uma prática se engajam no que poderíamos chamar de “ignorância estratégica”, evitando verdades que poderiam obrigá-los a encarar os males com os quais se acumpliciam. Os que comeram o açúcar ou vestiram o algodão que cultivavam; simplesmente não foram os escravos que tornaram aqueles produtos possíveis.
Pois bem, com esses sinais em mente, aí vão quatro práticas de futura condenação moral.
- Nosso sistema prisional: já sabemos que o desperdício em massa de vidas em nossas prisões é moralmente incômodo. Os que defendem as condições prisionais vigentes geralmente o fazem em termos não morais (citando custos ou a dificuldade administrativa de reformas); e se inclinam para desviar nossos olhos dos detalhes . Aproximadamente 3% dos adultos deste país estão presos. Temos 4% da população mundial, mas 25% dos seus prisioneiros.
Nenhum outro país exibe proporção tão grande de população encarcerada; mesmo a China tem uma taxa de menos da metade da nossa. E tem mais: a maioria dos nossos prisioneiros são criminosos não-violentos, muitos deles detidos por acusações envolvendo drogas. E a punição que muitas vezes lhes cabe não é detalhada em nenhuma sentença judicial. Mais de 100 mil presos sofrem abusos sexuais a cada ano, incluindo estupro; alguns contraem o HIV em consequência disso.
Nosso país mantém pelo menos 25 mil prisioneiros isolados nas chamadas prisões de segurança máxima, sob condições que muitos consideram equivalente à tortura.
-Produção industrial de carne: os argumentos contra a crueldade na criação industrial de carne circulam há muito tempo; no século 18, Jeremy Bentham já observava que, no tocante ao tratamento de animais, a questão-chave não é se os animais podem raciocinar, mas se eles podem sofrer. As pessoas que comem bacon ou frango produzido em esquemas industriais raramente oferecem um justificativa moral para o que estão fazendo. Tentam não pensar muito nisso, furtando-se daquelas histórias de revirar o estômago sobre o que se passa em nossos abatedouros industriais.
Dos mais de 90 milhões de cabeças de gado de nosso país (EUA; o Brasil possui 190 milhões), pelo menos 10 milhões estão socadas em fazendas de confinamento, poupadas de doenças decorrentes da aglomeração com doses regulares de antibióticos, rodeadas por pilhas de excrementos, as narinas mergulhadas no cheiro da própria urina. Imaginem isso - e depois imaginem seus netos vendo esse quadro. Na União Europeia, muitas das condições mais desumanas que toleramos - como aqueles estábulos amontoados de porcas grávidas - já são ou serão ilegais em breve.
-Idosos isolados: quase dois milhões dos idosos dos EUA estão recolhidos a casas de repouso, fora das vistas, e, em certa medida, fora das mentes. nas últimas décadas surgiram no país cerca de 10 mil instalações com fins lucrativos para recebê-los. outros americanos idosos conseguem viver de maneira independente, mas com frequência são isolados e separados de suas famílias. (Os EUA não estão sozinhos entre as democracias avançadas neste quesito. Lembrem-se do calor que atingiu a França em 2003: enquanto muitas famílias gozavam férias de verão, 14 mil pais e avós idosos foram deixados para morrer nas temperaturas escaldantes. Será esse o significado da modernidade ocidental - sociedades que não sentem obrigação filial por seus idosos incômodos? Manter próximos os pais que envelhecem e seus filhos é um desafio, particularmente numa sociedade em que quase todo o mundo tem emprego fora de casa (quando não do outro lado do país). Quando vemos pessoas idosas sofrendo de isolamento crescente, apesar dos muitos parentes vivos, é sinal de que alguma coisa está errada. Mas nós mal tentamos encarar essa situação. E quando podemos, tratamos de tirá-la de nossas mentes. Ao menos por interesse próprio, no mínimo isso, deveríamos almejar que nossos descendentes encontrem uma maneira de convívio com os velhos.
-O meio ambiente: dentre as muitas obrigações transgeracionais, a candidata mais óbvia ao opróbrio é a nossa atitude irresponsável em face dos recursos naturais do planeta e da ecologia. Olhando uma imagem de satélite da Rússia, pode-se ver uma vasta extensão de terras áridas one há décadas havia uma vegetação luxuriante. Eu me refiro à República da Calmúquia, que abriga o primeiro deserto produzido pela ação humana da Europa e reconhecido como tal nos anos 90. A desertificação, que resulta principakmente de práticas destrutivas de manejo da terra; e dezenas de milhares de aldeias chinesas foram invadidas por dunas de areia nas últimas décadas. Não é que sejamos insensíveis ao que fazemos com o planeta; conhecemos os danos causados pelo desflorestamento, a destruição de terras alagáveis, a poluição, a pesca predatória, as emissões de gases do efeito estufa - essa ladainha toda. Só que nossos descendentes, que herdarão esta Terra devastada, provavelmente não terão sequer o luxo dessa imprudência.
Não paremos por aqui. Cada um de nós suspeita de práticas que algum dia levarão as pessoas a se perguntarem, consternadas: afinal, o que eles estavam pensando? Mesmo sem ter uma boa resposta, faríamos bem em ao menos antecipar a pergunta.
KWAME ANTHONY APPIAH é professor de filosofia na Universidade Princeton, a autor de The horror code: how moral revolutions happen.
-Produção industrial de carne: os argumentos contra a crueldade na criação industrial de carne circulam há muito tempo; no século 18, Jeremy Bentham já observava que, no tocante ao tratamento de animais, a questão-chave não é se os animais podem raciocinar, mas se eles podem sofrer. As pessoas que comem bacon ou frango produzido em esquemas industriais raramente oferecem um justificativa moral para o que estão fazendo. Tentam não pensar muito nisso, furtando-se daquelas histórias de revirar o estômago sobre o que se passa em nossos abatedouros industriais.
Dos mais de 90 milhões de cabeças de gado de nosso país (EUA; o Brasil possui 190 milhões), pelo menos 10 milhões estão socadas em fazendas de confinamento, poupadas de doenças decorrentes da aglomeração com doses regulares de antibióticos, rodeadas por pilhas de excrementos, as narinas mergulhadas no cheiro da própria urina. Imaginem isso - e depois imaginem seus netos vendo esse quadro. Na União Europeia, muitas das condições mais desumanas que toleramos - como aqueles estábulos amontoados de porcas grávidas - já são ou serão ilegais em breve.
-Idosos isolados: quase dois milhões dos idosos dos EUA estão recolhidos a casas de repouso, fora das vistas, e, em certa medida, fora das mentes. nas últimas décadas surgiram no país cerca de 10 mil instalações com fins lucrativos para recebê-los. outros americanos idosos conseguem viver de maneira independente, mas com frequência são isolados e separados de suas famílias. (Os EUA não estão sozinhos entre as democracias avançadas neste quesito. Lembrem-se do calor que atingiu a França em 2003: enquanto muitas famílias gozavam férias de verão, 14 mil pais e avós idosos foram deixados para morrer nas temperaturas escaldantes. Será esse o significado da modernidade ocidental - sociedades que não sentem obrigação filial por seus idosos incômodos? Manter próximos os pais que envelhecem e seus filhos é um desafio, particularmente numa sociedade em que quase todo o mundo tem emprego fora de casa (quando não do outro lado do país). Quando vemos pessoas idosas sofrendo de isolamento crescente, apesar dos muitos parentes vivos, é sinal de que alguma coisa está errada. Mas nós mal tentamos encarar essa situação. E quando podemos, tratamos de tirá-la de nossas mentes. Ao menos por interesse próprio, no mínimo isso, deveríamos almejar que nossos descendentes encontrem uma maneira de convívio com os velhos.
-O meio ambiente: dentre as muitas obrigações transgeracionais, a candidata mais óbvia ao opróbrio é a nossa atitude irresponsável em face dos recursos naturais do planeta e da ecologia. Olhando uma imagem de satélite da Rússia, pode-se ver uma vasta extensão de terras áridas one há décadas havia uma vegetação luxuriante. Eu me refiro à República da Calmúquia, que abriga o primeiro deserto produzido pela ação humana da Europa e reconhecido como tal nos anos 90. A desertificação, que resulta principakmente de práticas destrutivas de manejo da terra; e dezenas de milhares de aldeias chinesas foram invadidas por dunas de areia nas últimas décadas. Não é que sejamos insensíveis ao que fazemos com o planeta; conhecemos os danos causados pelo desflorestamento, a destruição de terras alagáveis, a poluição, a pesca predatória, as emissões de gases do efeito estufa - essa ladainha toda. Só que nossos descendentes, que herdarão esta Terra devastada, provavelmente não terão sequer o luxo dessa imprudência.
Não paremos por aqui. Cada um de nós suspeita de práticas que algum dia levarão as pessoas a se perguntarem, consternadas: afinal, o que eles estavam pensando? Mesmo sem ter uma boa resposta, faríamos bem em ao menos antecipar a pergunta.
KWAME ANTHONY APPIAH é professor de filosofia na Universidade Princeton, a autor de The horror code: how moral revolutions happen.
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