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quinta-feira, 6 de maio de 2010

Ossos da coluna

Roberto da Matta
Estranho país esse que, num temporal, as cidades se liquefazem e, nos incêndios, os bombeiros não têm água para apagar o fogo. E tome "bolsas" de todos os tipos para todos os males. Bolsas que, entre outras coisas, legitimam e oficializam, como sabiam os ingleses do tempo da rainha Vitória que primeiro instituíram o Estado e bem-estar social, a miserável condição de pobre, tornando difícil abandoná-la e fazendo do seu recipiente um dependente de carteirinha do governo que com ele estabelece um laço clientelístico e coronelista. Curiosa combinação do tradicional (a dívida e o favor que iria desaparecer no Brasil de Lula e do PT) com o moderno e impessoal sistema computadorizado que seria, afinal, "transparente" e "objetivo", mas na realidade amplia o viés populista. Com esse amálgama, não há como perder eleição.
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Bizarro esse reino no qual se fala tanto em mudança, para tudo continuar na mesma. Um sistema marcado por uma agressividade sem par nas ruas; uma ausência de atitudes e comportamentos indicativos de alguma transformação real por parte das autoridades. Seria preciso passar da teoria - do papel e do decreto para o comportamento. Mas todo governante que se preza está escondido no seu palácio e só aparece (quando aparece) para, em tragédias ou comícios, reafirmar a sua impotência, ou onipotência porque como candidato o sujeito sabe tudo, mas no governo é o que se sabe.
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O colunista Merval Pereira tem razão, a psicopatologia atinge alguns políticos. A anormalidade (daí a necessidade do "recall") pode ser aplicada a uma linhagem de políticos que usam o cargo para (a) escapar de crimes cometidos no passado; (b) para "roubar & fazer" furtando incestuosamente o dinheiro público; (c) querer mais estado no sentido stalinista e óbvio do tamanho e não da eficiência, porque sabem que, quanto maior mais complicado atribuir responsabilidade e, no Brasil, quem dirige, comanda ou chefia, assume a propriedade e, como dono, fica (pasmem!!!) isento de responsabilidade; (d) impedir a correção e até mesmo a discussão da defasagem entre lei e costume; (e) em nome do desvario populista ou do chavão fascista do "Brasil potência", manter a estadofilia, estadolatria e estadopatia, segundo a qual o maior dever da sociedade é o de sustentar e se deixar explorar pela máquina de impostos e regulamentos do Estado que, por ser o fim de todo projeto coletivo chamado gloriosamente de esquerdista, deve ser perdulário, aristocrático, irresponsável e brutalmente ineficiente. Só agora, graças ao Plano Real (freudianamente esquecido pelo PSDB), é que começamos a ter uma noção mais precisa de que os gastos devem ser controlados porque o dinheiro não é do governo, mas da sociedade a qual ele deve servir, e não o contrário. Penso que esse é um tema a ser visto nesta eleição presidencial.
Voltemos, porém, à psicopatologia, um tema que deve ser mais explorado no Brasil e na América Latina. Quem viu ou votou em Jânio Quadros e Tenório Cavalcanti, quem ouviu um discurso do general Costa e Silva ou leu uma biografia de Pedro I intuiu o assunto. O carisma tem uma ligação direta com o personalismo, frequentemente alérgico a qualquer universalismo, daí para a narcisismo patológico é um pulo. O dono de um papel exclusivo, em franco contraste com os outros poderes, pois só há um prefeito, um governador e um presidente - por oposição a centenas de parlamentares e juízes que constituem os outros poderes -, tem muita latitude para mentir, prometer, torcer, caricaturar, distorcer e apresentar-se como vítima ou profeta salvacionista do povo. Com isso, ele conta com a inércia de uma poderosa tradição religiosa e cultural, pois os reis tinham o poder de abençoar (como fazia d. João VI no Brasil) e de curar, como revelou o historiador Marc Bloch, num livro célebre. O surto psicótico como estilo de comunicação é confundido e tomado condescendentemente como "desabafo", "emoção" ou "pito". É preciso uma sociologia e uma psicologia do "poder executivo".
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Visito as páginas de um poderoso livro de viagem, Vida no Brasil, de Thomas Ewbank, publicado em 1856 e escrito na décadas anterior, no Rio de Janeiro. Lá ele já falava dos alagamentos causados por qualquer chuvarada e, relativamente a esse "estado forte" que já está em pauta, ele acentuava surpreso (pois era um criativo inventor e mecânico entendido em hidráulica e foi comissário do departamento de patentes do governo americano) como, em decorrência da escravidão, o trabalho manual era estigmatizado no Brasil. Donde o emprego no Estado. Ewbank observa a busca desesperada por cargos na burocracia estatal como saída para os que não eram aristocratas nem escravos ou pobres. O sistema estatal brasileiro é muito mais do que uma burocracia weberiana. Ele é um meio de resolver as contradições de uma sociedade em que o trabalho é coisa para escravo, e um modo de recriar o velho paternalismo dos barões; pois uma vez funcionário, o futuro está garantido. No Brasil, todo branco quer ser Mané, todo preto quer ser Pelé e todo mundo quer ser funcionário público e sócio (ou dono, depende...) do Estado.

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