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domingo, 4 de abril de 2010

Quinto Constitucional: Posição contrária

Neste artigo, como em muitos outros de sua lavra, o autor escancara as agruras do judiciário, tão aparelhado quanto qualquer outra instituição deste País. Aparelhamento no sentido da maldita indicação política, que contamina o processo e o Judiário em si.
Quinto Constitucional em primeira instância não existe, mas, se houvesse, ninguém haveria de querer ingressar na magistratura por meio dele.
Ser juiz de primeira instância dá um trabalho danado, caro leitor. É ele quem se expõe (e à família, muitas vezes) a vinganças, ouve os intermináveis depoimentos das testemunhas, sente o drama de perto, ao vivo e em cores.
Raramente inicia carreira num gabinete com ar condicionado numa capital ou grande cidade, mas nos rincões, havendo casos, no Norte ou Nordeste, em que uma magistrado tem de atender a mais de uma comarca, desdobrando-se entre uma e outra e, é claro, quando ausente, não há juiz de plantão para conceder eventual Habeas Corpus.
O juiz de primeira instância instrui o processo, que é, desde ler a petição inicial, confrontando-a com as provas, ouvir testemunhas, concluir as partes, presidir as audiências e, finalmente, proferir a sentença.
Já a partir da segunda instância, onde já se pode entrar pelo Quinto, também, sem jamais ter conduzido um processo, não há audiências, só exame de papelada, onde um de três desembargadores, na segunda instância, lê e relata o processo, e julga a apelação com os outros dois colegas.
Na terceira instância, o Superior Tribunal de Justiça, cujos juízes são chamados ministros, com 33 membros, creio que a maioria não formada por juízes de carreira, crescem a importância e o prestígio de seus integrantes, ao lado da politicagem para tornar-se um deles. Seu poder está em derrubar as decisões de segunda instância, o que não é pouca coisa.
Chegamos, enfim, ao Supremo Tribunal Federal, composto de onze juízes, também chamados ministros. Ali, quem nomeia é o presidente da República, sob o vaguíssimo conceito de "notório saber jurídico". Para surpresa de muitos, não é preciso ser advogado, nem mesmo bacharel em Direito para tornar-se um de seus integrantes. Um autodidata, por exemplo, pode, de fato, saber muito mais sobre Direito que muitos juristas. Ali, atualmente, só um de seus ministros é juiz de carreira.
Mas o conceito está erradíssimo, como o demonstra neste artigo o juiz federal de carreira Roberto Wanderley Nogueira. Leia-o, pois. É bom saber com são, na realidade, os Três Poderes.
Herméticos, todos são; a Câmara, que varre sua sujeira para debaixo do tapete, o Senado, idem, e o Executivo, cujas agruras só vêm à tona quando algum membro do consórcio se sente prejudicado, ou quando a imprensa investigativa as desnuda.
Já sobre o Judiciário, a impressão que sinto, pelas palavras de advogados, usuários e serventuários, é de temerosa reverência. Mas há juízes e juízes, juízas e juízas. Já fui tratado com extrema cortesia por uns, com certo inibitório distanciamento por outros. Aí, trata-se de variações que há em qualquer profissão, empresa, profissional liberal.
Este prefácio é de autoria de Luiz Leitão. Não integra o artigo, nem reflete, necessariamente, a opinião do autor ou do jornal.
Roberto Wanderley Nogueira*
Quinto ( in)constitucional
"Emerge daí um grave ressentimento corporativo em relação à classe dos magistrados..."
O quinto constitucional tornou heterogênea a composição dos Tribunais no País, ao admitir que os integrem profissionais de duas carreiras distintas da Magistratura: o Ministério Público e a Advocacia.
Essa espécie de sistema de "cotas judiciais", disposto no artigo 94 da Constituição, tem a ingênua veleidade de assegurar ao Poder Judiciário certa "oxigenação social", servindo, todavia, de argumento aos opositores do controle externo da Magistratura que o consideram tecnicamente impossível. Por isso mesmo, esse sistema não garante o controle social e democrático da atuação administrativo-financeira do Judiciário e da Magistratura.
Seu papel, embora atribuído ao Conselho Nacional de Justiça, órgão cuja presença era até o advento da EC 45/2004 inconcebível no nosso sistema judicial, não escapou, significativamente, das mãos da própria Magistratura Nacional como de resto do universo dos operadores jurídicos. Nas composições do CNJ, ao molde dos velhos estratagemas de indicação política, só há juristas, Magistrados (em maioria), representantes do Ministério Público, Advogados ou professores de Direito.
A sociedade não está ali inteiramente representada, logo, esse modelo de controle externo padece de ilegitimidade e frustra a luta que se vinha travando de longa data em seu favor. Por isso mesmo, o Estado repete ali a realização, com vantagem, o modelo das composições dos Tribunais: a presença de advogados e representantes do MP em sua atuação.
Esses egressos de outras carreiras levam aos Tribunais, vitaliciamente, os marcos subjetivos que os fizeram ascender antes e também no presente. Por isso, não se divisa nessas subcomposições quem não tenha sido especialmente contemplado, e bem visto, pelos governos de turno.
Advogados, por exemplo, que ascendem aos Tribunais pelo quinto constitucional não costumam ser profissionais modestos; geralmente vêm de carreiras muitíssimo bem sucedidas, e não é isso que determina suas transferências. Dos representantes do MP pode-se dizer que eles são pinçados após politicamente testados em exercícios de poder especializado, como acontece nas chefias respectivas para as quais se ascende também por "vontade política".
O risco de aproveitar esse pessoal da forma como estabelecido pela Constituição é justamente o de que venha a exercitar a magistratura sendo exímios políticos, aliados a lobbies, amesquinhando a instituição judiciária, tanto no ambiente dos Tribunais dos escolhidos como num complexo concerto de excentricidades políticas tradicionais por meio das quais o pretendente passa a atuar por si ou por seus prepostos.
Afastando a generalização, há quadros provenientes desse acesso muito bem situados nos Tribunais atuando exemplarmente. O vício reside na estrutura normativa que erige um modelo alienígena para a estruturação dos Tribunais, sobretudo após o advento da última Reforma do Judiciário (2004).
Embora não se admita o problema, é o fenômeno que acaba prevalecendo na medida em que, sem essas tratativas, jamais algum profissional seria eleito para os cargos reservados ao quinto. Emerge daí um grave ressentimento corporativo em relação à classe dos magistrados num quadro de depreciação dos aspectos profissionais da carreira, enquanto as políticas públicas para o Judiciário passam a ser encampadas por pessoal de fora. Assim, ex-advogados e ex-promotores que atuam nos Tribunais locais e se tornam, desde logo, vitalícios, têm acesso aos Tribunais Superiores sem observarem o quinto constitucional, passando a ocupar vagas de Magistrados como se de carreira fossem. Os efeitos dessa inversão de ordem podem ser trágicos.
Também no plano das carreiras judiciárias - as originais e aquelas criadas pelo Quinto - temos uma coisa e prejudicamos outra. Atitude que se agrava grotescamente e sem fim à vista. Em complemento, o problema do STF, cujas composições são inteiramente desprovidas de sentido profissional, na verdade embasadas em um dogma político, dada a vagueza dos critérios para provê-las, de inspiração norte-americana, um sistema de tradição jurídica radicalmente diverso do nosso. Copiamos um instituto do common law, enquanto formamos uma plataforma romano-germânica (civil law), produzindo algo teratológico, haja vista o caráter eminentemente político dessas composições, que acaba se insinuando nos demais Tribunais. Um óbvio esforço em reconstruir as composições dos Tribunais no País por índole política, e não técnica.
Não fosse a Constituição brasileira quase meramente simbólica, no sentido do pensamento de Marcelo Neves e de Karl Loewenstein, até se compreenderia essa liberalidade de indicação dos que terão a última palavra no que toca ao seu cumprimento.
Mas, ante o contínuo descompromisso do Estado para com a Carta Política, não há razoável previsibilidade nos veredictos do Supremo, cujo perfil decisório torna-se um poderoso vetor na distribuição da Justiça. Agrava o quadro de morosidades crônicas também ali observado - o congestionamento da Corte, que tem apenas um ministro juiz de carreira, inclui 16,6% de processos anteriores a 2006.
Entretanto, institutos inovadores como a Súmula Vinculante, consolidam de vez a quebra do princípio da liberdade no ato de produzir decisão judicial de parte de todo juiz alheio ao Guardião da Carta. E não é difícil compreender o sentido de uma clássica lição de Nicklas Luhmann para quem aquele que detém a responsabilidade de produzir decisão, deve exigir para si a liberdade de procedê-la.
A liberdade decisória dos juízes brasileiros sempre esteve em xeque, predisposta às intemperanças do momento histórico, da conjuntura e das suscetibilidades das cúpulas, inatingíveis e distantes da gente comum.
O poder de um juiz brasileiro é, de regra, medíocre, e não vai além de sacudir ladrão de galinha na cadeia, porque do contrário correrá riscos em sua carreira. Quem abraça uma profissão almeja a justa ascensão, impossível para a maioria no quadro vigente.
Sobra-lhe a descrença na própria Justiça; e nada pode ser mais destrutivo para a democracia do que um tal sentimento envolto em sombras no território judicial pátrio.
Sobre isto, convém destacar que, sem que Justiça seja feita à própria Justiça, nenhum processo de racionalização dos serviços judiciários ou mesmo a transformação dos Juízes em simples tarefeiros vai garantir cabal eficiência à Jurisdição.
Os Tribunais, como outros espaços públicos no Brasil, parecem ter donos, que não são, definitivamente, a sociedade organizada, o povo. Por isso mesmo, deplorável a reserva de cargos de juízes nas Instâncias Superiores, aos que não o são de fato, pois jamais sofreram as agruras da experiência judicial desde os seus primórdios.
Aqueles que se reprovam o controle externo da Magistratura cuja expressão embrionária é o CNJ, até por articulações as mais irascíveis, se contradizem na medida em que defendem a possibilidade de acesso às instâncias superiores de Juízes que acudiram aos Tribunais locais pela via do quinto.
Ora, desde que o advento do CNJ acudiu ao propósito regulamentar de tecer as políticas públicas para a vida administrativa e financeira da administração da Justiça no Brasil, não há mais substância constitucional a validar o quinto. A EC 45/2004, ao criar o controle externo do Judiciário, embora ainda pouco expandido socialmente, deixou de aproveitar, excepcionalmente, a contribuição de profissionais não judiciários aos quadros dos Tribunais no país, à exceção da Suprema Corte.
Já é difícil garantir pureza institucional mesmo entre os iguais que compõem as corporações de ofício nas sociedades periféricas. Imagine-se com o aparelhamento praticado até aqui para favorecer quem não deveria sê-lo por não se enquadrar nas mesmas condições de seus concorrentes.
Enfim, só por amor ao argumento, basta que o Constituinte derivado experimente classificar o instituto como um exercício temporário e honorífico para constatar a sua obsolescência, à falta de interessados em ocupar essas vagas como prática puramente cívica e participativa, e não profissional, acrescida da vantagem de não se submeter às dores de uma carreira.
Poderá também, alternativamente, estabelecer a incorporação do sistema de mandato semelhante ao do TSE e nos TREs, quanto à reserva para juristas para suas composições: remunerados durante o exercício do mandato judiciário, terão de deixar o posto e regressar às funções de origem tão logo seus períodos se completem.
Quaisquer das duas soluções sugeridas de lege ferenda - não seja para a extinção pura e simples do quinto constitucional - importa em perfeita oxigenação judiciária, diversamente do que presentemente acontece em relação a todos os Tribunais brasileiros - um efeito estufa - à exceção dos Eleitorais.
Jornal Carta Forense, quinta-feira, 1 de abril de 2010 *Juiz Federal em Recife/PE; Doutor em Direito Público (UFPE/Universidade de Helsinki); Pós-Doutor em Ensino Jurídico (UFSC), Professor-adjunto da FDR/UFPE e do Mestrado em Direito/UNICAP.

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