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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Os (verdadeiros) filhos do Brasil

Roberto DaMatta*

Leio que vão fazer um filme sobre o "Roberto". Pô - imagina o meu lado narciso, apoiado por sua dimensão cretina (que faz todo mundo dizer e fazer merda) -, finalmente minha vida como herói das salas de aula e dos livros escritos pelas madrugadas; das viagens pelos sertões e pesquisas nas aldeias indígenas; como intérprete do Brasil pelo carnaval, pela malandragem e pelo futebol, será reconhecida! Fantasia, é claro! Quem você pensa que é?, diz, trazendo-me ao chão, você, leitor destas bem traçadas? A cinebiografia programada será de um "Roberto", sem dúvida, mas do Carlos. Esse, sim, merecedor de ter sua vida ampliada em tela gigante a ser vista com música de fundo e no escuro que conduz à concentração e ao choro escondido e arrebatado.
O que esse surto narcisista do cronista tem a ver com o assunto do momento (do momento? Tá brincando...): O caso concreto e filmado de, entretanto, uma "alegada", "suspeita", "suposta", "hipotética" e "mentirosa corrupção", cometida por José Roberto Arruda, governador de Brasília, e seus comparsas? Pois até agora, como remarcou o presidente Lula, que, para benefício do bom senso mudou de ideia, só temos imagens e elas não dizem muito mais - sobretudo depois de enlouquecer de tanto vê-las - do que 1 milhão de palavras!
O que tem esse caso pseudopolicial de corrupção com minha fantasia narcisista de ser cinebiografado tendo, quem sabe, Sean Connary - p.q.p! - fazendo o meu papel?
Tem tudo, caros leitores!
A raiz disso que chamamos de "corrupção" ou "roubalheira" faz parte da dinâmica desta sociedade de viés aristocrático, escravocrata e capitalista que, reduzindo a política a uma formalidade e situando tudo no Estado, adotou o sistema republicano. Nela, há mais dificuldade em ter cidadãos iguais perante a lei do produzir em série que chamei - faz 30 anos, no livro, Carnavais, Malandros e Heróis - "superpessoas". Essas figuras que resultam da combinação do viés hierárquico e carismático (que marcam a nobreza); com a burocracia estatal de corte igualitário, desenhada para dela diferenciar-se e proteger-se e que acaba por ser sócia do sistema e por isso inventa o "sabe com quem está falando?" em todas as situações em que se vê ameaçada pela igualdade que recusa seguir. A superpessoa ou o sujeito com biografia, situado acima das leis, é rotineiramente fabricado neste sistema governado por leis universais e igualitárias, mas que, na prática ou na "realidade", são aplicadas com toneladas de sal (para parafrasear Weber) e pimenta (digo eu) somente para os subordinados. Neste Brasil, a discussão política passa por tudo tudo, menos pelo poder dos governantes que passam a ser os donos (como acentuou Faoro) de um sistema centralizado, cujo caráter é, paradoxalmente, universal, mas que opera de modo particularista, perguntando menos sobre o que e como foi feito, e muito mais pelo quem fez. Quando se chega a esse nível, você vira filho do Brasil! Uma vez por dentro do Estado (que governa tudo) e transformados em "superpessoas", os administradores públicos deixam de ser guardas das leis e dos constrangimentos morais impostos pelos cargos, e viram seus senhores ou "políticos". Fazem como seus sócios das empresas privadas que contratam, com a diferença que essas empresas têm dono enquanto os nossos corruptos deveriam ser escudeiros dos cargos que ocupam temporariamente. Se aqueles burlam o mercado e a competição, estes saqueiam o povo em nome do qual foram eleitos. O resultado é que a lei só vale para baixo e para o lado, sobretudo para quem está do "outro lado".
Os mensalões provam que a questão não está na "direita", como pensávamos antigamente; mas no "centro" e também na "esquerda" lacerdista, como o governo Lula teve a honra de demonstrar. Mais: ocorre em todos os níveis politicoadministrativos. No federal (caso do PT), estadual (caso do PSDB) e municipal (caso dos DEM).
Isso prova como a ideologia se esvai diante desse estilo de governo que transforma o eleito em nome do povo num rei. Numa superpessoa. Uma entidade que, como dizia Darcy Ribeiro: não nasceu, foi fundado (caso dele, aliás...). E, assim, biografado, bajulado e cinebiografado atinge um "Nirvana social" - essa forma brasileira de onipotência. Entra na aristocracia dos que podem confundir igualdade e hierarquia e usar as instituições que administram - salvo as exceções que confirmam a regra - sem nenhuma noção de limite, culpa ou vergonha. Os verdadeiros filhos do Brasil, leitores, são a elite, não o povo. Esse sempre foi o filho da puta do País! Aliás, a ética do sistema escancara: "Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei!", o que a um só tempo demonstra a nossa aversão à igualdade que deveria estar no centro de um sistema liberal até hoje claudicante, e a subordinação de um valor às redes de relações pessoais, responsáveis por essa rotineira cadeia de saques dos dinheiros públicos. Os filmes dos pilantras eleitos e dos seus asseclas, dando e recebendo dinheiro vivo, sendo envergonhadamente escondido (afinal, até bandidos têm noção do imoral) na meia e na cueca (se pudessem, enfiavam o dinheiro no próprio corpo), nesses mensalões, servem ao menos para revelar essa dolorosa e triste verdade! (Continua, se não houver coisa mais deprimente, na próxima semana).

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