Nossas instituições são fortes, fraco é o presidente quando dele se exige muita força
José Nêumanne
A expressão
latina lapsus linguae é
traduzida por ato falho, mas usada de maneira tão rotineira entre nós que se
tornou verbete do Dicionário
Houaiss. Este a define como “erro acidental ao falar, que altera o
sentido que queria se dar à frase e que é interpretado (por influência da
psicanálise) como expressão de pensamentos reprimidos”. Catalogada por Sigmund
Freud no clássico texto de Psicopatologia
da Vida Cotidiana, ela pode explicar o uso do verbo acordar pelo
presidente Michel Temer na entrevista coletiva no Palácio do Planalto no domingo
passado. Nela anunciou a extinção, antes da aplicação, da anistia a qualquer
crime vinculado a doações eleitorais, declaradas ou não, resultante de uma
autêntica conspiração de ratos no Congresso.
Habituado ao
uso castiço do vernáculo, o presidente da República usou o termo acordar no
primeiro significado que lhe atribui o citado dicionário, concordar,
ao justificar o comunicado a três bocas da decisão de abortar o acordão espúrio
para aprovar o perdão injustificável em emenda sem autor nem número. Ao lado
dos presidentes do Senado, Renan Calheiros, e da Câmara, Rodrigo Maia, o chefe
do Executivo anunciou que o trio obedecia à “voz das ruas”. Ou seja, os três
foram acordados pelo clamor do povo, que os acordou, no sentido do segundo
verbete do verbo: “fazer sair ou sair do sono ou da sonolência”. E ainda mais
exatamente: “devolver ou recobrar os sentidos”. Esse despertar da letargia
cívica pode ser explicado pela indignação popular provocada pelo comportamento
reprovável de Temer no lamentável episódio palaciano que forçou o ex-ministro
da Cultura Marcelo Calero a deixar o governo.
Estranho no ninho íntimo do palácio
e do “parlamentério” composto para vencer no Congresso, Calero saiu atirando
com uma metralhadora giratória que lhe foi presenteada pelos três mais insignes
inquilinos do Palácio do Planalto: o até então secretário de Governo, Geddel
Vieira Lima, o chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, e Michel Temer em pessoa.
Denunciado e poupado no escândalo
dos anões do Orçamento, em que parlamentares manipulavam emendas para desviar
verbas orçamentárias para entidades sociais fantasmas ou com a ajuda de
empreiteiras, Geddel foi agora acusado por Calero de ter praticado concussão e
tráfico de influência. O ex-secretário de Governo confessou, candidamente, que
apenas “ponderou” que o edifício La Vue na Ladeira da Barra, no centro
histórico de Salvador, deveria ser erguido para gerar empregos e garantir
estabilidade jurídica. A imagem do espigão pornográfico agredindo a paisagem
histórica para dar a seus moradores uma vista esplêndida da Baía de Todos os
Santos tornou o pretexto, no mínimo, cínico.
Para socorrer Geddel acudiram 27
líderes de bancadas governistas, conduzidos pelo líder do governo na Câmara,
André “Cunha” Moura. O presidente do Senado decretou o encerramento do caso na
terça-feira. Idêntica pressa levou o da Câmara a afirmar: “Nós precisamos que o
ministro Geddel continue no governo”. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
deu seu palpite infeliz, alertando que o Brasil precisa que Temer governe até
2018, data da próxima eleição presidencial. Com isso bateu o recorde de
intromissão imprópria no episódio: o País sobreviveu 516 anos sem Temer no
poder e nossa História não terá fim em dois anos.
Mas o ministro em queda dispunha de
balas no pente e disparou-as, contando que Padilha o aconselhou a procurar a
advogada-geral da União para resolver o impasse com o colega. E acusou Temer de
se acumpliciar ao subordinado e amigo baiano e ao fiel anspeçada gaú-cho por
assediar o diplomata, noviço “nessas coisas que a política tem”. Além de não
ter demitido Geddel, o presidente espalhou pistas no local do crime ao permitir
o tráfego implícito da anistia à delinquência de políticos por seu líder, o
deputado André Moura.
As
consequências de seu erro são imprevisíveis. Brasileiros decentes exigiam do
chefe, ciente dos próprios encontros com a vítima, que, logo no início do caso,
demitisse Geddel e mantivesse Calero, por mais indigesta que lhe parecesse a
atitude. Ao não fazê-lo, talvez por ter a boca entortada pelo vício de fumar o
cachimbo da velha política da Primeira República – cujo lema, até hoje vigente
no Brasil oficial (chamado por Machado de Assis de “burlesco” em 1861), era
“aos amigos, tudo; aos inimigos o rigor da lei” –, Temer literalmente se
perdeu. Restou-lhe convocar por “condução coercitiva”, conforme Vera Magalhães Estado,
28/11, A6), a coletiva de domingo, em que anunciou o tal pacto com os
presidentes do Congresso para salvar a face de todos por uns dias perante o
País real, que o Bruxo do Cosme Velho, na crítica ao Ministério da Fazenda do
Segundo Império, disse elevar-lhe “os melhores instintos”.
Temer ajudou a eleger Dilma em dois
pleitos e por isso não é, como pretende e gostaria de ser, completamente isento
dos erros lulodilmistas que levaram o Brasil à maior crise moral, política e
econômica da História. Mas é o que nos resta para – com a ajuda de uma equipe
econômica competente e o mínimo de atrapalho de seu “parlamentério” – nos
retirar desta encalacrada. O diabo é que o próprio presidente deu um exemplo
infeliz e impróprio de que pode atrapalhar muito. Anteontem, a uma plateia de
empresários proferiu o seguinte disparate: “Qualquer fatozinho abala as
instituições”.
Nada há de certo, lúcido ou construtivo na frase. Se ele se
referia ao episódio envolvendo Calero e Geddel, a única justificativa para o
uso do diminutivo é a dimensão dos dois ex-ministros, de Padilha e, pelo visto,
dele próprio. Para felicidade geral da Nação, as instituições democráticas
mostraram força e estabilidade ao substituírem Dilma dentro das normas vigentes
do Estado Democrático de Direito. Quem tem demonstrado fraqueza em momentos
capitais como este é quem o diz e o governo dele.
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