José Nêumanne
Sem apoio da Nação nem do destino, governo só se manterá com ajuda do Judiciário
A “delação do fim do mundo”, de 77 executivos da Odebrecht, da qual foram divulgadas três propostas no fim de semana, não mudou apenas o xadrez da política nacional, como era de esperar. Ao relatarem pedidos de propina feitos pelos chefes do governo federal e do Congresso e dirigentes de 11 partidos, os funcionários Cláudio Melo Filho, Paulo Cesena e Leandro Azevedo ofereceram de lambujem informações como a autoria de 14 leis, entre elas a da leniência, da qual a autora viria a ser beneficiária. Na prática, a República não tem sido governada nos últimos 13 anos, 11 meses e 12 dias por Lula, Dilma e Temer, mas, sim, pelo cartel de empreiteiros acusados na Lava Jato. Desde o notório Marcelo Odebrecht até os ocultos Sérgio Andrade e César Mata Pires, donos da Andrade Gutierrez e da OAS, entre alguns poucos outros.
A informação acima só será entendida em sua inteireza pelo leitor destas linhas se ele perceber que a consequência desse tsunami institucional implica as evidências de que o feroz debate ideológico entre coxinhas e mortadelas, a aparente luta dos partidos pelo poder e as intrigas palacianas não têm sentido. As três primeiras propostas de leniência da empresa e de delação premiada dos dirigentes da maior empreiteira do Brasil, entre eles seu dono, Emílio, e seu herdeiro, Marcelo, evidenciam que as caríssimas campanhas eleitorais, nas quais esgrimem os mais bem pagos publicitários do País, não passam de exercícios de ficção de gosto suspeito. Assim como os debates de policiais, advogados, juízes e promotores em torno das leis que imperam em nossa democracia não passam de torneios retóricos.
Nesta República de faz de conta, patrões são os pagadores de propinas, remuneração parcial dos mandatários a serviço deles, resultante das sobras do superfaturamento generalizado que levou a maior estatal brasileira à beira da insolvência e a Nação, à matroca. Desse golpe oculto resultam as empresas quebradas, os 12 milhões de desempregados e a miséria das contas públicas.
O povão, espoliado, recorre ao que tem à mão: as pesquisas de opinião pública. Com sua pré-racionalidade emergente, a população revela aos pesquisadores dos institutos seu desencanto com os gestores de ocasião, que fingem que administram a fétida massa falida. Domingo, o Datafolha revelou que a popularidade do chefe do Executivo, alcunhado de MT pelo “Departamento de Operações Estruturadas” da Odebrecht, caiu de 14% em julho para 10% cinco meses depois. Assim, ele empatou tecnicamente com os 9% da titular de sua chapa vencedora na eleição de 2014, constatados às vésperas do afastamento dela, em maio. E 17 pontos porcentuais medem o desencanto com Temer: de 34% para 51%.
Esta é a crônica do desabamento anunciado: em sete meses de desgoverno, o ex-vice de Dilma nunca foi mais do que o ex-vice de Dilma. Falsamente acusado de ter usurpado o trono da madama, ele assume a ilegitimidade como um ônus. Negou-se a relatar em pormenores as culpas da antecessora nas crises moral, econômica e política sem precedentes. E perdeu a chance de conquistar o cidadão para a dura batalha da ascensão do fundo do poço de pré-sal que atingimos. Antes da divulgação das narrativas do trio de pré-delatores da Odebrecht, poder-se-ia (usando uma mesóclise, do seu gosto) imaginar que ele pretende com isso deixar no ar a hipótese de que nada tinha que ver com aquele legado maldito.
Mas diante das revelações de que os corruptores ocuparam, na prática, o poder, deixando para os corruptos o papel de encenadores da farsa de luta democrática para que, enfim, todos se dessem bem, já é possível concluir que, dessa forma, ele se poupou a si e aos seus. Pois, afinal, os íntimos dele e ele próprio participavam ativamente do escambo. A ponto de o atual líder de seu governo no Congresso, Romero Jucá, vulgo Caju, ser promovido a “resolvedor-geral”.
Meteu-se, pois, num embaraço de que só sairá se obtiver o beneplácito total de quem, na cúpula do Poder Judiciário, acreditar em que mais vale uma “governabilidade” à mão do que uma Constituição em voo. A lei garante ao presidente um passado que não o condena, se não delinquir durante o mandato presidencial. As 44 citações de suas iniciais na eventual delação divulgada dizem respeito a suspeitas que não o incriminarão. Resta saber quanto resistirá seu prestígio em agonia. A ponto de ceder a chiliques da patota de Rogério Rosso, eminência parda desta República de pangarés.
Cabe ao Ministério Público Federal ou ao relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal ou conceder-lhe a indulgência plena de suspender, no primeiro caso, ou não homologar a delação, no segundo, mantendo no tambor a bala de prata pronta para ser disparada no coração combalido de seu curto mandato. Seria um escárnio (no dizer da presidente Cármen Lúcia) usar de novo algum delito menor para poupar de pena maior (no caso, capital) o maganão a ser apenado. Cujo malfeito (em seu linguajar imitado da tatibitate madama Rousseff) já é de conhecimento de todos, inclusive dos gatos-pingados que acreditam em seus dons de milagreiro.
Restar-lhe-á também a “escolha de Sofia”, da protagonista de William Styron, a de qual dos dois filhos salvar da morte. Para manter o fiapo de República, que lhe cabe conduzir ao cadafalso das incertezas ou ao malogro manifesto dos vizinhos Argentina e Venezuela, poderá jogar sua bagagem favorita ao mar (os valiosos baús Angorá, Primo, Kafta e Justiça). Será doloroso, mas um já foi: Babel não afundou?
Seu jato, em plena pane seca, poderá até planar e pousar, desde que lidere um projeto de pôr fim a todas as injustiças: das prerrogativas de foro e aposentadorias de políticos, militares, bombeiros e marajás até os benefícios fiscais que ainda forram as burras dos patrões da empreita e do mercado. Caso contrário, nosso avião se chocará com a montanha.
*Jornalista, poeta e escritor
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