Um ‘chefe’ de
índios e uma ‘madame’ de ópera deram ordens a um grande
empreiteiro?
Na semana
passada, a literatura universal perdeu um dos mais eruditos entre seus exegetas
e também um dos mais bem-sucedidos de seus criadores com a morte de Umberto Eco.
Este, contudo, não levou para o túmulo um célebre axioma universal do romance
policial, seja o mais popular, seja o mais sofisticado: o criminoso sempre volta
ao local do crime.
O grande mestre,
porém, desapareceu sem ter tido a oportunidade de conhecer uma contribuição,
dada pelo grupo de criminosos que promoveu no Brasil o maior assalto ao
patrimônio público de todos os tempos, e que, de certa forma, parodia esse
truísmo: o novo tesoureiro sempre volta a cometer o crime do antigo. Foi assim
que o ex-tesoureiro do partido que manda na República há 13 anos (por
coincidência o número com que está inscrito na Justiça Eleitoral) Delúbio
Soares, condenado na Ação Penal (AP) nº 470, vulgo Mensalão, por corrupção,
entre outros delitos, foi imitado por seu sucessor. Como é notório, João Vaccari
Neto já foi condenado por similar sequência de crimes após investigações da
Polícia Federal (PF) e do Ministério Público Federal (MPF) e com penas impostas
pelo juiz da chamada e aclamada Operação Lava Jato, Sérgio Moro, da Justiça
Federal do Paraná.
Com sua habitual
dose de ironia, a deusa grega Clio, que rege a História, acaba de nos conceder
exemplo da mesma natureza, que parece ter sido feito para confirmar a máxima
anterior e exatamente na atividade na qual o citado professor Eco foi pontífice
máximo desde os anos 60: a comunicação de massas. Em depoimento na Câmara, em
2005, o publicitário baiano Duda Mendonça abalou os alicerces da política
profissional no Brasil ao revelar que havia recebido em moeda estrangeira e em
contas no exterior o pagamento por seus serviços à campanha vitoriosa do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT).
Mostrando que, em política e polícia, o raio pode cair no mesmo lugar, isso
acaba de acontecer com quem o substituiu na função.
A prisão
temporária do sucessor de Duda na campanha de reeleição de Lula, em 2006, e nas
vitórias de Dilma Rousseff, apoiada pelo antecessor, em 2010 e 2014, outro
baiano, João Santana, confirma, de forma peremptória, a aplicação do aforismo
sobre o tesoureiro quando se trata de marqueteiro. E não é mera coincidência.
Afinal, nos tempos modernos da comunicação de massas, genialmente explicados por
Eco, o guardador de dinheiro e o fabricante de sonhos para enganar eleitor têm
importância capital na disputa pelo voto do povo. E distorcem a paródia de Hegel
por Marx, segundo a qual a História acontece como tragédia e se repete como
farsa. Na versão do PT brasileiro, só se conhecem
tragédias.
Surpreendido
pela notícia fatídica quando tentava asfaltar o caminho de volta de Danilo
Medina, do Partido de la Liberación Dominicana, à presidência da República
Dominicana, o marqueteiro defendeu-se como pôde. Ocorreu-lhe, por exemplo, dizer
que o dinheiro que entesoura em bancos estrangeiros foi licitamente ganho em
campanhas que assessorou no exterior. Convenhamos que imaginar que nos convence
de que faturou milhões de dólares de candidatos de Venezuela, El Salvador,
República Dominicana, nas Américas do Sul e Central, e Angola, na África, com
economias a anos-luz da brasileira, por mais críticas que sejam nossas condições
econômicas no momento (o que está longe de ser o caso nas primeiras campanhas de
Lula e Dilma) é uma aposta muito arriscada em nossa estupidez coletiva. Por mais
razões que algum observador cruel tenha para justificar esse motivo, é contar
excessivamente com a credulidade popular. Muito embora sua imaginação
publicitária tenha sido capaz de ludibriar mais de 54 milhões de eleitores
brasileiros que sufragaram sua candidata em 2014 imaginando que com as asas de
suas mentiras voariam sobre o abismo à vista.
Se Aristóteles
pudesse ressuscitar e opinar, talvez o tutor de Alexandre, o Grande, arriscasse
a hipótese mais lógica de que pode ter ocorrido exatamente o contrário: o
propinoduto da Petrobrás e a generosidade do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) podem ter financiado as campanhas dos companheiros
venezuelano, salvadorenho, dominicano e angolano. Seria, no mínimo, curioso
imaginar mais essa dívida da originalidade histórica a nosso PT: com o fracasso
da exportação da revolução cubana de Fidel Castro e Ernesto Che Guevara para o
terceiro mundo, a esquerda tupiniquim inaugurou a exportação da corrupção do
Robin Hood às avessas, em que os pobres empobrecem para enriquecer os
companheiros socialistas.
A hipótese,
contudo, é absurda: para Hegel e Marx, os fatos históricos podem voltar a
ocorrer, mas não seus protagonistas. Sem Aristóteles para nos tutelar, podemos
concluir que enfrentamos uma tentativa de negar a História e, ao mesmo tempo,
dotá-la de um espelho às avessas. A Operação Lava Jato mandou prendê-lo após
reunir provas testemunhais e documentais acachapantes de seus crimes contábeis.
Só que ele, contando apenas com seu extraordinário dom de iludir nosso
eleitorado, se diz vítima de “perseguição” sem considerar nenhuma das evidências
apresentadas por policiais e promotores federais, com aval de um juiz
respeitável.
O desgoverno
falido, assombrado com a hipótese de o Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
interrompê-lo com a cassação de Dilma e Temer diante de novas provas óbvias,
argumenta que pagou R$ 70 milhões (!) pelo talento número um de João Patinhas.
E, ainda assim, nada tem que ver com suas diabruras contábeis. Isso é tão
convincente como persuadir policiais, promotores, juiz e todos nós de que o
chefe citado nos e-mails de Léo Pinheiro, da empreiteira OAS, publicados na capa
da Veja, seja Touro Sentado, Tibiriçá ou Winnetou. E que madame seja
Pompadour, Bovary ou Ming.
Jornalista,
poeta e escritor
(Publicado na
Pág.2A do Estado de S. Paulo de quarta-feira 24 de fevereiro de
2016)
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