José
Nêumanne
As eleições não
terão o condão de unir esta Pátria em frangalhos e escombros e sem
futuro
Espere mais um
pouco. Este ano da (des)graça de 2015 não acabará amanhã nem talvez em mais 12
meses: ele tem tudo para se arrastar pelo menos até o réveillon de 2019,
quando só então a esperança poderá ressurgir.
Militantes
ocultos, embalados pelos eflúvios da ceia natalina, apostam que as facas
voltaram às bainhas e o pó da rua assentou desde que a dissidência liderada por
Barroso, o copioso, deu vitória parcial (que pode se tornar de Pirro) ao
desgoverno Dilma há duas semanas. Ledo e ivo engano! A maioria governista
flutuante (de 5 a 8, mais o voto de Minerva de Lewandowski sempre a favor)
decretou a intervenção do Judiciário, de início, sobre o Legislativo e, em
seguida, sobre nossa língua materna, que está ficando menos culta e mais
feia.
Pois o artigo
51, parágrafo 1.º, da Constituição vigente, pelo menos até segunda ordem na
próxima sessão plenária do Supremo Tribunal Federal (STF), reza: “Compete
privativamente à Câmara dos Deputados: I – autorizar, por dois terços de seus
membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da
República e os Ministros de Estado”. Ao transferir para o Senado o poder de
abrir o processo, avalizado por maioria de dois terços dos deputados, o STF deu
ao verbo um sentido que o dicionário do mestre Houaiss não reconhece entre uma
miríade de significados: o de apenas encaminhar. Autorizar quer dizer:
tornar lícito, permitir, dar permissão a, consentir, dar direito a, dar motivo
a, possibilitar, tornar válido, abonar, justificar e
validar.
Mais subversivo
ainda foi dar ao advérbio de modo privativamente, que significa
exclusivamente, singularmente, especificamente, o sentido de subsidiariamente,
cuja palavra latina, de que decorre no vernáculo, representa algo “na reserva,
na retaguarda”. Com a troca semântica, o STF dispôs-se a atuar como Poder não
autônomo (para Houaiss, “dotado da faculdade de determinar as próprias normas de
conduta, sem imposições de outrem”), mas submisso (“disposto à obediência”,
idem).
De volta à
História: por que, além de provar a subserviência do Judiciário ao Executivo, a
vitória de Dilma não seria parcial e lembraria a do rei de Épiro e Macedônia, ao
lamentar uma batalha vitoriosa por ter nela perdido tantos soldados que passou a
considerar a consequência inevitável da derrota na guerra? É que, numa prova de
que o cérebro não é sua arma favorita, a presidente Dilma, no dia seguinte a
esta, em vez de estender a mão à Nação, que amarga índices apavorantes de queda
de atividade econômica, emprego e renda e inflação e dólar em alta, para buscar
a conciliação para sair do atoleiro, enfiou o pé no acelerador: deixou de fingir
que acenava ao mercado, abraçou o populismo e beijou o
desastre.
Cérebro também
não é o forte do candidato que ela derrotou em 2014. Aécio Neves flertou com o
presidente da Câmara, Eduardo Cunha, cuja popularidade é pior que a de Dilma, e
assistiu de camarote à humilhante derrota da batalha nas ruas ao escolher outra
banda podre da maçã. Depois, cuspiu na face da alternativa de poder à mão,
Michel Temer, e correu para casa, de onde, aliás, parece nunca ter
saído.
Ambos provam ao
povo traído, irado e ressabiado que vale a descrição sempre atual do historiador
Sérgio Buarque, que definiu como cordial (de cordialis, coração em latim
medieval) a desfaçatez sem pudor do brasileiro na mistureba viciosa do público
com o privado.
Chefe do governo
e líder da oposição já confundiram muito rua e casa e agora mostram ter coração
duro, sem coragem nem compaixão. No Rio, Dilma inaugurou o Museu do Futuro,
exata metáfora da evidência de que o País do porvir, previsto por Stefan Zweig,
fica cada vez mais distante deste. Agora temos até um museu para celebrá-lo, já
que do passado nunca ninguém cuidou. E ela não voltou para consolar os pobres
aflitos morrendo feito insetos às portas dos hospitais públicos
fluminenses.
Mauricio Macri
aborda as vítimas das enchentes na Argentina e Dilma as sobrevoa de helicóptero:
ele sabe que governo implica compromisso com o povo; ela acha que é só ficar no
poder e, com seu estilo tatibitate, repete diuturna e noturnamente a decisão
histórica do imperador fanfarrão. Aécio não foi ao Sul nem deu atenção à
devastação do Rio Doce pela lama tóxica no Estado onde nasceu, que governou e no
qual foi por ela derrotado.
Para Elizabeth
Bishop, o órgão mais utilizado pelo brasileiro é o fígado. A presidente não
perturba o dela lidando com desgraças ao rés do chão e a céu aberto. O senador
distribuiu em redes sociais cartões de um Natal de comercial de margarina no
apartamento em que arrastões na praia de Ipanema não azedam seu humor. Dilma
preferiu indultar petistas condenados pelo STF no mensalão e se solidarizar com
um aliado bebum, ofendido no Leblon por bêbados do lado de lá, a consolar
vítimas da microcefalia, da doença pública no Rio e da lama tóxica em
Minas.
É tolo esperar
que neste conflito nossa Pátria em frangalhos e escombros se una nas eleições
que prenunciam mais do mesmo: em 2016, dona Marta do PT disputará a Prefeitura
de São Paulo com seu Haddad do padim Lula? Em 2018, Aécio, Serra e
Alckmin terão triunfo inusitado ou mais um fiasco?
Haverá uma
regata olímpica à ré na Baía de Guanabara, descrita como “nojenta” pelo holandês
Dorian van Rijsselberghe, campeão em Londres-2012 na classe RS:X? Ele teve de
tirar sacos plásticos do casco do barco para vencer a Copa Brasil de Vela. E o
mal-estar de um membro de sua equipe denota que estamos com o intestino
solto.
Em seis meses,
os coliformes fecais guanabarinos, os dejetos metálicos da Samarco, a seca e a
microcefalia no Nordeste e os incêndios na Amazônia e na Bahia ganharão o mundo,
mas não mais conquistando o planeta, como nos tempos do charme imbatível de
Lulinha Paz e Amor. A nós, desde o tempo da Confederação dos Tamoios, só nos
resta recolher os cacos e enterrar os ossos.
Jornalista,
poeta e escritor
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