Pesquisar conteúdo deste blog

domingo, 13 de dezembro de 2015

Quem fala pelo planeta?


Roberto DaMatta


Os cientistas, os religiosos, as pessoas comuns, os jornalistas, os povos tribais (que não têm Estado), os bilionários, a ONU ou os países? É difícil assumir o ponto de vista da totalidade (ou seja: do mundo como um conjunto interdependente) quando somos dominados pelo individualismo – pela crença segundo a qual a parte é mais importante do que o todo.
Essa questão está dolorosamente inscrita na nossa vida social e na Conferência Mundial sobre o Clima, reunião infelizmente abafada pela crise política nacional.
A questão é importante, sobretudo, quando sofremos os efeitos perversos das mudanças climáticas no Brasil, tomando consciência tardia das transformações que afetaram o nosso ambiente “natural” em nome de um progresso obviamente ambíguo e duvidoso. Excepcionais secas e derrames pluviais, e um funesto desastre com o rompimento da barragem de Mariana, numa região mineira de exploração secular, fazem prova desse triste e irresponsável destino que temos infligido a nós mesmos.
Há algo dramático em toda essa experiência pós-moderna com o meio ambiente como mostrei no livro Conta de Mentiroso, publicado em 1993, pois a natureza sempre foi pensada como magnífica e generosa no Brasil.
Éramos um país sem tufão, furacão e terremoto, com um clima acolhedor e rios generosos que jamais seriam assassinados.
Mas, conforme seguia a fábula, essa natureza era compensada por um “povinho” terrível controlado por “políticos” piores do que Macunaíma. Pois este não tinha nenhum caráter, o que já é muito diante dos anti-heróis mistificadores de hoje em dia.
Seria um exagero duvidar das boas intenções dos cientistas especializados em ecologia e mudanças climáticas, mas o meu ponto é saber até onde a ciência teria força para competir com as suas respectivas pátrias, as quais têm muito mais instrumentos de coação moral sobre todos eles. Afinal, a pátria moderna tem renda de impostos e forças armadas, enquanto a ciência depende de verbas e vive em instituições dispersas e dependentes.
Enquanto estadistas falam em nome de Estados nacionais onde nascemos, vivemos e morremos, cientistas não podem declarar guerra ou proibir pesquisas. Ademais, criticar uma teoria é bem mais fácil do que mudar de regime ou de nacionalidade...
Quem faz o planeta sofrer? E, mais que isso, como sabemos que ele sofre, senão pelo acesso e pelo modo em que esse enorme palco, no qual entramos sem pedir, afeta seus mais diversos habitantes e a nós mesmos.
Para uma pessoa nascida e produzida no século passado como eu, ainda soa como inacreditável que a Terra esteja mesmo sendo destruída pelo consumo voraz dos seus filhos.
Em 1948, quando entrei no ginásio, descobri que o mundo ia acabar, mas pensei que quem iria desfechar o golpe final fosse Deus, não nós. Hoje, a imprevisibilidade da previsão do tempo, uma conquista da qual meu velho pai se orgulhava, revela um planeta febril e doente.
Todos nós, ínfimos atores, sofremos com os males do palco e do teatro. Quem pede socorro ao lado de povos e países é a mãe terra. Eis o fato singular de nossa era antropocêntrica. Os humanos matam tanto ou mais e melhor do que a natureza pois, no fundo, e, de fato, não há cultura sem natureza. Um inventa o outro.
A consciência planetária é recente. Para nós, embebidos pelos valores do complexo religioso judaico-cristão-islamita, tem sido muito difícil admitir a nossa responsabilidade sobre um mundo que um Deus Absoluto e Eterno teria criado para nosso uso e gozo, o qual nos deu a prerrogativa cósmica de explorar o seu potencial infinito de riqueza. Se Deus é infinito, nós também seríamos infinitos e a terra na qual agimos com o nosso suor ou os juros jamais teria um fim.
Nossa visão tribal e, depois, nacional e global sempre foi ofuscada pelas nossas divisões internas e externas. O mundo chamado “civilizado” começa com castigos e conflitos irremediáveis entre pais e filhos; entre povos escolhidos e marginais.
A propriedade privada criou a soberania nacional territorial, a qual é, no meu entender, um elemento central da dimensão cosmopolítica dessa conferência mundial sobre o clima. Ninguém percebeu como o político e o econômico se imbricavam nessa onda de hiperconsumo como um estilo de vida e uma forma de identidade.
Voltamos à questão crucial: quem pode falar pelo planeta? As potências mais ricas que podem destruir o planeta numa guerra ou por meio de um capitalismo predatório? Ou seriam os povos tribais do deserto, das ilhas e das montanhas que não têm no território o seu foco porque, entre eles, os elos entre as pessoas são mais importantes do que os elos entre pessoas e coisas, como é nosso caso?
Como pôr em foco dogmas modernos como o progresso realizado por intenção e acaso e, ao lado dele, rever a ideia de mecanismos autogerenciados e regulados como o mercado e a lógica da produção sem discutir a soberania nacional?
Você, leitor, já avassalado com o Brasil, tem a palavra...

Nenhum comentário:

Postar um comentário