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sábado, 5 de dezembro de 2015

Mortes e coincidências


Roberto DaMatta


O que fazer quando percepções éticas e religiosas diferenciadas surgem no horizonte ou vamos em sua busca como ocorria com os etnógrafos e antropologistas que hoje chegam às suas oito décadas, como é o caso de Richard Moneygrand, de Roque Laraia, de Julio Cezar Melatti e outros amigos e colegas que estão no fundo do meu coração?
Recebi uma estranha mensagem de Moneygrand ao chegar da homenagem a Thales de Azevedo em Salvador, Bahia, a qual – por sua vez – coincidiu com o inominável evento de Paris e o lamaçal do rompimento das barragens que assassinou o rio Doce!
A rememória, começa Moneygrand na sua mensagem, é um funeral secundário, pois a morte não termina enquanto houver um vivo ligado ao morto. Em muitas sociedades, após um enterro primário, sucede-se um desenterro no qual os ossos do defunto são cuidadosamente limpos e, então, há um reenterro num local nobre e definitivo. Tal processo corresponde a uma ressurreição do morto, que não morre de uma só vez. Os enterros secundários, lembra-me Moneygrand, estão em sincronia com a transformação do morto, que assusta, causa dor, incita à revolta ou revela as injustiças do mundo numa figura recortada apenas pelas boas memórias, que chegam com a aceitação constrangida da morte como parte da vida. O morto recente pode surgir como um fantasma, mas o morto comemorado é um ancestral. O tempo do enterro inaugural ao definitivo corresponde à viagem deste mundo cheio de crises ao lugar plácido e indesejável dos mortos onde, dizem os índios congrás, todos têm o sangue verde. Nas comemorações – reafirma meu ex-professor –, o comemorado é o fundador – um exemplo a ser seguido.
Recebi a mensagem de Moneygrand e, em seguida, confirmei a morte de um colega de juventude, Terence S. Turner, especialista na humanidade caiapó, o qual fez parte do nosso grupo de jovens pesquisadores na extinta Divisão de Antropologia do Museu Nacional e na Harvard dos anos 60.
A notícia da morte do Terence Turner, professor emérito da Universidade de Chicago, atuando na Universidade Cornell, em Ithaca, coincidiu com a homenagem à memória de Thales de Azevedo, em Salvador. Mas o intrigante veio com o que antigamente se chamava de “trabalho do morto”.
Pois nesta mesma comunicação, Moneygrand menciona uma outra morte. A de um índio que lhe serviu de guia, amigo, confidente, professor e copesquisador de sua própria sociedade, quando ele, então nos seus 20 e poucos anos, estudou a cultura congrá, uma tribo situada nas margens altas do rio Praia Baixa, em pleno Brasil Central.
A essa altura, transcrevo a epístola.
“Fazia tempo que não pensava nesses anfitriões, cuja vida social foi objeto de meu trabalho de campo. No e-mail que recebi do Dr. Antenor Barbado, antropólogo que atualmente realiza pesquisas etnológicas com os congrás, há um pedido dramático. Teria eu alguma gravação de cânticos dos anos 60? Muitas músicas se perderam no labirinto da memória coletiva ou foram levados pela ventania da morte dos antigos. Será que eu acharia, no meu material gravado, algumas dessas relíquias?
Estou em busca de tais fitas que, conforme você sabe, fazem parte de uma vida passada e vivida e, como tudo que está nestes espaços, não são fáceis nem agradáveis de procurar. Mas isso não é tudo, pois ao lado desse pedido, e talvez como uma prova de dedicação ao velho ofício de tentar compreender a vida dos outros, Antenor Barbado me envia um ensaio sobre a morte entre os congrás. E neste límpido ensaio etnográfico, neste registro preciso e detalhado sobre a morte, eu descubro que o objeto da etnografia científica tinha como foco o falecimento do meu melhor amigo – de um dos meus professores mais queridos. Um sábio chamado Katam.
Ao ler o trabalho, a memória trouxe as horas em que passei entrevistando Katam, que era tão interessado quanto eu em entender sua sociedade. Lembrei-me do dia em viajamos em direção à aldeia dos mortos, localizada no poente e lá encontramos um mísero povoado sertanejo chamado Raiz, um arruado fundado por uma venda repleta de cachaceiros.
Mas eis – amigo DaMatta – o extraordinário. No dia anterior à mensagem do Dr. Antenor Barbado, eu tive um sonho perturbador. Nele, vi a mim mesmo na imensa aldeia desses mortos de sangue verde. No sonho, vislumbrei gente que amei e muitos que esqueci. Katam estava ao meu lado e me explicava tudo. Lembro-me de suas palavras finais, um pouco antes de acordar:
– Não se assuste. Depois de muito tempo, todos que aqui estão morrem mais uma vez e seus espíritos, agora muito fracos, entram num toco podre ou num animal velho e, finalmente, somem. E são, como todos nós, amados e esquecidos...
Seria esse sonho um agouro ou mera coincidência? De um lado, mortes simultâneas; do outro, a abominação do terrorismo e o descaso no rompimento das barragens. Eis que o Brasil virou mesmo um lamaçal. Qual seria a mensagem do sonho? Sem o velho José do Egito, fico sem saber.
Take care,
Dick."

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