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quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

A crise desembrulha o Brasil


Roberto DaMatta


Os asiáticos, vistos como sábios pela nossa inocente ignorância, sabem que “crise” é oportunidade. Uma porta fecha um espaço mas abre outro, dizia o mandarim Fu Manchu, mestre de um certo Mao.
Mas “crise” é também um embrulho aberto fora de hora. Toda crise contém um certo desequilíbrio temporal, como uma música fora de ritmo, uma visita fora de hora ou um presente aberto antes do aniversário.
Ela desnuda os segredos internos e traz à luz o pressentimento. As meias furadas; e no Brasil, uma vez mais, os elos de intimidade entre ocupantes de cargos impessoais e seus quadrilheiros embalados por propinas, no embrulho do ter poder e, simultaneamente, ficar muito rico.
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Reúna um ator disposto a tirar o pai da prisão; um banqueiro bilionário e um suave senador da República, líder de um governo de índole autoritária entre quatro paredes e você tem o embrulho ou a “crise” perfeita quando, por meio de uma gravação secreta, o ator explode as paredes e transforma a cabala em teatro, mostrando, no desembrulho, como política não é teatro e o perigo de se abusar do teatro como política.
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No Brasil, “conhecer” sugere acesso e familiaridade. O senador amigo e parceiro do aprisionado trama como libertá-lo. O motivo é grave: trata-se de assunto de amizade e família não demarcado pela lei universal; é também um caso de salvação da própria pele e, quem sabe, de todo governo da República. “Humanitarismo” define de modo apropriado o senador, desembrulhando uma dimensão do Brasil. Somos todos legais, mas, quando se trata de amigos, tudo é possível. A amizade engloba lei e o plano de fuga menciona laços com figuras sagradas num sistema republicano e igualitário. No caso, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal os quais seriam contactados para produzir pareceres favoráveis ao condenado, tirando-o do risco de uma colaboração com os federais. Diz o senador que já havia falado com o ministro Dias Toffoli o qual, a seu pedido, iria conversar com o ministro Gilmar Mendes (aquele que, revela Delcídio, oscila muito). Discute-se quem vai falar com quem, como é rotineiro no exercício do poder à brasileira. É preciso impedir a delação e, se ela é anulada, abre-se a possibilidade de uma rodada de revogações.
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A República burguesa e capitalista, adaptada ao individualismo e ao mercado com suas normas injustas, curva-se à monarquia, na qual os nobres não são julgados pelos crimes que cometem, mas por “privilégio”: por leis privadas, aplicáveis ao seu segmento. A coroa hierárquica do “você sabe com quem está falando?” e do “eu vou falar com Fulano ou Beltrano” engloba a igualdade republicana de todos perante a lei. Com grana, pode-se levantar a venda da Justiça, tornando-a caolha para um grupo privilegiado.
O plano é “centrar fogo no STF”, diz o senador. Por intermédio dos ministros conhecidos, produziremos a chave de cadeia que vai levar o companheiro a outro país. Preferencialmente à Espanha, onde ele tem cidadania. Ele vai escapar, cogita-se, do lugar mítico de todas as fugas: o Paraguai ou, quem sabe, a Venezuela. Vai – discutem com seriedade de meninos, escalando times de futebol – de barco ou de avião? E se for pelo ar, em que tipo de jatinho? Um Falcon 50, sugere o líder do governo no Congresso.
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Quando os ministros do Supremo ouviram o pacote, lhe ocorreu a única resposta possível: a da unanimidade republicana. Colocando-a em ação, confirmaram uma “antes jamais vista neste país” prisão de um senador e de um banqueiro. De quebra, prendeu-se também um advogado. Escapou o ator, salvo porque, piedosamente, tentava salvar o pai e, no afã filial, traiu o grupo, mas abriu e reavivou os olhos do País.
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A ministra Carmem Lúcia resumiu a indignação dos ministros, quando declarou: “Na história recente da nossa pátria, houve um momento que a maioria de nós, brasileiros, acreditou que a esperança tinha vencido o medo. Depois, nos deparamos com a ação penal 470 (o mensalão) e descobrimos que o cinismo tinha vencido aquela esperança. Agora, parece que o escárnio venceu o cinismo. O crime – sentenciou – não vencerá a Justiça”.
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De dentro do desembrulho do Brasil, surge a esperança de um governo pela lei, a única fórmula e a última perspectiva de fechar esse drama social interminável, criado por um projeto de poder cujo poder seria interminável.
Houve um momento em que se acreditou que a esperança tinha vencido o medo.

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