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terça-feira, 15 de setembro de 2015

Só Existe Interpretação? (2)


Roberto da Matta

Existe “realidade” e limite no mundo social brasileiro? Seria possível interpretar o feijão com arroz como caviar?

Lembro que, nos anos 60, o projeto era o de transformar a “realidade nacional” feita de feudalismo, espoliação burguesa e imperialismo ianque. Depois de uma década de lulo-petismo, porém, erros, incompetência, mentiras, roubalheiras, aparelhamentos, falsificações e inacreditáveis desvios de recursos, são rotinas.

O “real” foi relativizado.

Passou a ser uma preferência e virou interpretação inventada por golpistas, pela imprensa mentirosa e pelos fomentadores do ódio e do preconceito. Os traidores da confiança dos seus eleitores devem ser vistos com afeição. Seria deles um projeto político impecável e indiscutível – logo, isento de interpretação como o real do real!. Se conhecemos a infraestrutura – os determinantes da realidade – todo o resto é panaceia ou versão.

O professor Richard Moneygrand, guri, disse tudo isso faz tempo. Há “anos atrás”, como se diz no nosso brilhante momento intelectual. Como se “anos” pudessem mesmo estar na frente...

Seria possível associar sociedades aristocráticas e hierárquicas com a predisposição para ler o mundo como sendo feito do oficial (e do legal) em contraste com o real? Se for assim, pode-se apagar o real, já o “oficial” e o “legal” seriam versões de um “real jurídico”, que viria sempre em socorro de quem detém o poder. Sobretudo, do poder administrativo – a potência imediata e óbvia (mas não discutida) de “ser governo” e, como tal, cobrar impostos, licenciar bens e serviços, ter o monopólio da violência e, eventualmente, cuidar da saúde, da educação e do saneamento. No caso brasileiro, o governar seria apenas controlar e visitar súditos (ex-eleitores); ou o governar seria o dever de criar bem-estar coletivo?

Se governo e sociedade estão numa relação hierárquica, os governantes decolam da sociedade numa autoatribuída autoridade. Uma autoridade antirrepublicana. Se o governo é uma suprema autoridade, a moralidade estabelecida não conta e o governo pode ter razões que a sociedade desconhece. Pode, por exemplo, realizar uma política externa antidemocrática, alinhando-se a governos neofascistas. Pode também – e esse seria o limite e o foco da crise – assaltar a sociedade como tem sido o padrão brasileiro e latino-americano, mas que hoje enfrenta mais uma tecnologia de transparência do que a moralidade ambígua na qual, reitero, o país não é a sociedade com sua ética, mas é o governo na sua obra de duvidosas cumplicidades.

Do republicanismo fundado na igualdade perante a lei, surge um monstro aristocrático baseado no fato de que quem é do governo nada deve à sociedade, desde que tudo tenha “sido feito dentro da lei”. Ou realizado obedecendo formalidades, embora o resultado seja o enriquecimento abjeto dos seus comparsas e quadrilheiros.

Nos sistemas igualitários, em que governo e sociedade são interdependentes, o real funciona colecionando pontos de vista. Eu posso denunciar e discordar, mas não tenho o direito de tornar irreal ou imoral a versão do adversário. Desqualificar o adversário, negando-lhe a realidade, é o centro da crise brasileira.

Mas e o “real”? Onde, por Deus, foi parar a famosa “realidade brasileira” parida da escravidão e da chibata dos senhores que, tal como repete sem saber a esquerda caviar, eram abolicionistas? A negação do real não seria uma visão fascista do mundo? Se todos podem falar, então que venham as falas e os berros. Mas que eles tenham algo a ver com a realidade. Penso que terminou o ciclo no qual infantilizar a sociedade brasileira era a moda e o populismo o seu código predileto.

Ninguém aguenta mais assistir a uma peça na qual poucos atores honram seus papéis. Aliás, por uma questão de ética, alguns desses heróis deveriam sair do palco. Ademais, o final parece terrível: a corrupção vence a honestidade.

Sergio Buarque de Holanda, escreveu: “Em terra onde todos são barões, não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”. Quem seria essa força exterior? Os marcianos? Os exércitos da CUT? As Forças Armadas? Uma legião de anjos do Senhor?

Ora, tal força só pode ser a lei que, sendo expressão da honra de um país, não pode deixar que o roubo da coisa pública e a virtual destruição da gestão do bem comum transite de crime a ser debelado a valor a ser premiado. O bandido não pode ser reinterpretado como mocinho e nós, batalhadores do cotidiano, não podemos abandonar o real do feijão com arroz que, sem nenhuma interpretação, tem que ser comido.

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