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sábado, 26 de setembro de 2015

De mago a bruxo


Roberto DaMatta

O colégio havia interrompido as aulas e eu ia correndo pra casa. Passei pelo Palácio do Ingá, sede do governo fluminense, numa Niterói que era capital do Estado do Rio de Janeiro e vi um guarda reforçada. Era o dia 24 de agosto de 1954 e o rapaz com 18 anos vivia plenamente consciente o suicídio do presidente Getúlio Vargas. 

O único político que, exercendo o papel da mais alta autoridade do País, deu um tiro no coração e com ele lavou sua honra perante a sociedade que lhe cabia administrar. Esse coração não é um fiambre a ser devorado por ladrões, como dizia Lima Barreto, mas uma metáfora da terra onde nasci.
Quando cheguei em casa, envelheci. Meus pais lacrimejavam ao lado de um rádio de plástico que transfigurava o fato num evento histórico. Eis um homem que não viveu com a ambiguidade que prefere esperar. Trocou a honra ultrajada pela morte na hora que determinou. Não deixou que os eventos arrastassem as estruturas que o haviam fabricado como “pai dos pobres” e patrão de uma onda de modernização nacional. Criou, então, com seu autossacrifício, o evento que moldaria novas estruturas. Matou-se premeditadamente, liquidando o que Camus qualificou como o verdadeiro sentimento do absurdo: o divórcio entre o homem e a sua vida, o ator e o seu cenário. A duplicidade e o descaramento não lhe pertenciam.

Quem neste país de papéis desencontrados e vergonhosamente vilipendiados pelos seus atores, cometeria hoje esse ato que faz coincidir a razão para viver com a de morrer? Ninguém! E, no entanto, o papel de governar um país exige pouca tolerância com a dubiedade. 
Hoje, aquele rapazinho que virou um velho escreve para lembrar que essa espera pelo jeitinho salvador domina a cena nacional e ela, com seu feitio malandro e ambíguo de feiticeiro, que reza para a paz e para a violência; e, além disso, rouba muito e nada faz! – está levando o Brasil para o fundo de um poço sem fundo. Países morrem, mas os valores de uma sociedade vivem nos seus membros e todos nós, como figuras públicas ou não, estamos perdidos nos nossos papéis. Somos todos coniventes com o ambíguo, o sombreado, a cautela, e com um desprezível respeito pela democracia, que não vive sem sinceridade (hoje apelidada de “transparência”), como dizem todos os seus teóricos desde os Federalistas e de Tocqueville. 
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Quando dei aulas em Notre Dame, obtive o tal “green card” – a cobiçada residência nos Estados Unidos –, indagaram-me por que não solicitava a nacionalidade americana. Recusei e devolvi o meu cartão. Jamais poderia ter uma dupla cidadania. Era legal, mas, no meu entendimento, não seria digna do meu coração ou da minha obra que, embora modesta, revela minha determinação para compreender o Brasil. Não condeno quem a tenha, mas – devido à minha posição como homem público, jamais pude me conceber jurando a duas bandeiras, pertencendo a duas pátrias e, no mapa do mundo, ter dois países para amar e, preferencialmente, morrer. 
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Quando se trata de Brasil, não pode haver dúvida. Por isso, eu, já arruinado pela crise, fiquei ainda mais arrasado com o rebaixamento do Brasil. Mas o que me liquidou mesmo, como uma garrafa vazia liquida um cachaceiro, foi a opinião do ex-presidente Lula, o salvacionista nacional. Eis um homem possuído, tal como o seu partido, por muitas máscaras.
Em 2008, o Brasil ganhou o grau de investimento e um Lula-messias-presidente falou em “momento mágico”. O mago, louvando sua magia, declarou que o atestado de investimento demonstrava que o Brasil era um “país sério, que tem políticas sérias, que cuida das suas finanças com seriedade e que, por isso, passou a ser merecedor de uma confiança internacional”. Para quem jamais foi sério, ser chamado de “sério” é um ato mágico. Um gesto que transforma a picareta numa varinha de condão. 
Mas como reage o mago quando a mesma agência de risco rebaixa o Brasil governado por sua criatura? Ele vira um bruxo e, virando pelo avesso, afirma: “É importante que a gente tenha em conta que, o fato de ter diminuído o grau de investimento, não significa nada. Significa que apenas a gente não pode fazer o que eles querem”.
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Como confiar num sujeito capaz de transformar a magia da seriedade num nada, quando todo mundo está farto de saber que foi o governo Lula e Dilma, em carga dupla, quem jogou a autoestima do Brasil no lixo? Como não imaginar que ele seja mesmo muito rico ser o bruxo das feitiçarias da roubalheira sem par do petrolão? Como confiar diante desta prova plena de duplicidade malandra em dose dupla? 
Seria isso apenas uma expressão inocente de um estilo “político” fundado na malandragem; ou seria algo de raiz, incluindo a sua esquecida dupla cidadania na Itália e no Brasil? Até onde esse Lula, que se acha dono do Brasil, pensa que vai continuar nos infantilizando com suas mágicas e bruxarias?

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