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quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Noblesse oblige (2)




Roberto Damatta


Como outras senhoras da vizinhança, minha avó tinha os "seus pobres" e, numa pesquisa que fiz num bairro paulistano que se definia como "pobre", eu ouvi que a pobreza era uma prova para a riqueza. Quem esquece o outro lado: a dimensão trivial que a legitima porque interliga, torna-se um prisioneiro da sua condição. Aí está a fonte da desigualdade que suprime a diversidade.

Naquele tempo, alguns pobres ganhavam um "prato de comida", certos de que o recebido deveria ser dado com consciência e as parcimônias da virtude burguesa. Os que não podiam sequer demandar ou exigir e, envergonhados, pediam um "de comer", recebiam a dádiva pois seus doadores - quem sabe? - podiam virar pedintes. Os pobres comiam sentados, mas eu - um menino com a cabeça de velho; hoje eu sou um velho tentando não perder a cabeça de menino - os via ajoelhados. 

O "noblesse oblige" ocorre quando o poderoso se sente no dever de produzir o "dom" que fertiliza e traz o palco da vida à sua totalidade - os seus extremos. A sociedade na qual ele nasceu em "berço de ouro", ao lado do sistema que, por isso mesmo, produziu os que nascem entre sangue, fezes e urina. Parece frescura, mas o "noblesse oblige" é cobrado justamente dos que graças à sua inteligência, perseverança, e a sua ambição honesta ou canalha chegaram aos mais altos cargos da nação. Esse cacofônico "da-nação" inconsciente e significativamente remete às jaulas que, muitas vezes, destroem quem trai esses cargos.

Muitos milionários e famosos tendem - pensem em Howard Hughes ou Greta Garbo - a se fechar em copas e no labirinto de suas personas perdem contato com esses "outros". Com os admiradores que os tratam como deuses. E em deuses eles realmente se transformam porque suas vidas exemplificam as fissuras pelas quais conseguiram passar para chegar a esse reino dos bem-aventurados. Dos supostamente livres de problemas como grana, doença e sofrimento. Dos que demonstram que se pode sair da extrema pobreza para algo ainda maior do que a riqueza, porque eles são o testemunho vivo de que a fortuna, a sorte e a ascensão social existem e têm legitimidade num mundo que diz que somos todos iguais, em certas circunstâncias. Algo difícil de confiar para muita gente - inclusive para quem escreve essas linhas.

Suas biografias enfatizam o acaso e o senso de oportunidade. E, quando o nível da fama chega ao máximo, eles fazem com que os seus admiradores chorem pelo milagre de os encontrarem em carne e osso - porque eles não acreditam que estão diante dos seus ídolos. Nesse ponto, os famosos viram divindades e são expulsos do mundo rotineiro. Não podem mais comprar um jornal ou assistir a um filme. O "noblesse oblige" próprio das divindades obriga ao sorriso e aos autógrafos, produz paciência ao assédio e - eis o paradoxo - faz com que os ídolos sintam saudade dos velhos tempos, quando eram humanos como nós, pois agora - devidamente enjaulados pela celebrização - eles fingem serem pessoas comuns para poderem viver neste nosso mundo de carências e mediocridades do qual escaparam. 

Diante dos fãs que fanaticamente os construíram, eles muitas vezes se autodevoram e se destroem nas fantasias do sexo, da comida, das drogas ou no "mero álcool" que não é assim tão trivial, como canta a famosa balada de Cole Porter, I Get a Kick Out Of You. Tal foi o caso trágico de Richard Burton, o galês filho de um mineiro que, no seu diário, pensa com pesadas dúvidas se realmente era o maior, o mais rico e o melhor ator do mundo ou um recitador bobalhão e magistral de frases alheias, elevado ao cume por uma brutal ambição e por um casamento com uma outra celebridade. Ter demais é tão penoso quanto ter de menos; e o pior é que uma coisa sempre leva a outra.

Os poderosos recebem o direito de "governar", mas, em democracias, governar não é possuir e trapacear, mas administrar a chamada "coisa pública" com "noblesse oblige". Com um máximo de honestidade e consciência de bem servir e não de ser servido. Coisa difícil porque os "políticos"têm dois lados. À direita pertencem à cidade, ao estado e, acima de tudo, ao país a quem devem a difícil e assassinada "noblesse oblige"; e, à esquerda, ligam-se aos seus redutos ideológicos e partidários. No caso brasileiro, ao seu desejo de fama e sobretudo de grana - de muita, muita grana, porque o seu modelo de vida é absolutamente aristocrático e oposto a um austero e, estou convencido, a um impossível republicanismo. 

Em meio a essas correntes antagônicas e dependendo de seus lacaios, eles podem passar de representantes dignos (filhos de Deus) a triviais e vergonhosos ladrões do povo ou f.d.p! Como afirmava Herbert Block, um notável chargista americano - um Chico e Paulo Caruso deles -, repetindo o fundador da sociologia moderna, Émile Durkheim: "Aceitar a corrupção é uma forma de corrupção". Ou como proferia o mestre francês: quando um mal a ser evitado é procurado e vira um valor ou um ideal a ser seguido, como ocorre no Brasil, hoje dono de uma jamais vista ladroagem, então amigos, não é mais a nobreza que obriga, é a corrupção. Ou estou enganado?

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