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sábado, 17 de maio de 2014

Daqui para a eternidade (*)




Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo

Na imensa sala de alumínio estão lesmas brancas, morcegos sem cor, chapéus de sapo, gosmas brilhando em pálidos arco-íris, madrepérola de caracóis, teias com principiantes aranhas. Aquela mínima fauna se nutre de restos de umidade, de riachos finos nas frestas, desvãos, gretas de onde fluem formas moles. Durante o dia, raios de sol atravessam a poeira secular e entram na sala. Deles se nutrem os fungos e mucos. É uma sala, uma ilha, uma super-ilha abandonada de TV. Na parede, dezenas de telas apagadas (há quantos séculos?).
A hipótese de uma lesma passar sobre o switch de "power" da mesa de controle geral das telas de TV é de uma para dez milhões. Mas, aconteceu. Ao passar sobre o botão verde, acendeu-se uma onda de luz e som na sala.
Os organismos vivos captam a energia nova: fremem a este estímulo da luz colorida e pulsante de som; hastes, antenas, ventosas, tudo freme.
Nas grandes telas gira uma galáxia em forma de espiral. Um rosto de homem (cabelos brancos) mudo na tela aponta para um mapa celeste. Um leitor de lábios leria as frases de terror: "... diâmetro por volta de dez quilômetros, um detrito que despencou dos anéis de Saturno. Muitos anos antes, outro cometa, o Shoemaker-Levy 9, se enfiou em Júpiter a 16 de julho de 1994! Não há erro possível! O asteroide vem direto à Terra, chega em três meses!".
Outra tela se acende. Generais gritam uns aos outros, entre mapas celestes. Entre ogivas um general se exaspera: "O problema do tiro de um míssil contra o asteroide é que são duas balas em direção inversa. Elas têm de se chocar de frente como dois enormes caminhões nas 'highways' do espaço!". (O general sorriu da frase; ainda havia tempo para um resto de vaidade.)
"A ciência é a esperança!", gritava outro general, apontando a rota dos foguetes que sairiam em girândola ("wreath formation"), para deter a grande pedra.
Uma tela mostra milhares de judeus no Muro das Lamentações. Outra mostra Meca, com multidões de islamitas pisoteados. Milhares de pessoas invadem a base dos mísseis, rezam ao pé dos foguetes e são expulsas por pelotões de robocops. (As TVs eram canais abertos, por onde o passado reaparecia.)
Numa delas chora um velho (um filósofo?), como se falasse para si mesmo: "Nossa grande perda é que pensávamos controlar nossa morte. A grande humilhação é que ninguém tem culpa. Seria uma falha da ciência, um erro? Não. Nem isso: vamos acabar por que tudo deu certo!".
Ele é violentamente interrompido por um cientista militar: "Canalha pessimista, nossas ogivas vão atingir o alvo, temos ainda duas semanas para atirar em 'wreath formation'!". O militar atira no velho, sangue no rosto, o quadro fica vazio.
Um locutor desgrenhado implora: "As câmeras continuam abertas, tragam soluções, por Deus, alguma solução virá!". Casal de cientistas brada no vídeo: "Eu e minha mulher descobrimos o asteroide! Nós fomos os primeiros! Nós o batizamos de 'Silverstein-Sophie' e é preciso que todos saibam disso! Nossos direitos...". São empurrados para fora. Vemos uma extensa praia de cidade costeira. Multidões fogem dali para o interior, a câmera mostra a fuga vista do alto, milhões de formigas fugindo.
Homens cantando mantras esperam sentados na praia (correu que ali seria o local exato do impacto) para ter o "encontro final". Gente se acotovela diante das câmeras: rostos de pavor olham como se quisessem fugir para dentro do tubo, pessoas se beijam, se agarram, se comem na frente da câmera. Ao fundo, vemos a queda dos suicidas, gotas chovendo dos altos prédios.
No início, houve tentativas de adaptação à chegada do asteroide final. Um grande frisson racional de defesas. Criaram-se abrigos subterrâneos, biosferas. Depois da notícia do fim, vieram os discursos tranquilizadores: "Não há motivo para pânico, nossos foguetes vão barrar...". E políticos criticavam cientistas: "Há exagero nos cálculos. Os estragos não serão grandes, a nuvem de poeira poderá baixar em pouco tempo...". Um trôpego otimismo, uma sórdida esperança marcava as falas que agora surgem nas TVs.
Nas telas, cientistas decretam uma nova Idade do Gelo, mas são assassinados por multidões de fiéis, as "patrulhas da esperança", comandadas por messiânicos. A linguagem da esperança transforma-se em discurso místico, dividindo os homens em multidões depressivas à espera do grande "bang" e esquadrões de otimistas que cantam hinos!: "A grande pedra virá da galáxia de Deus! Aleluia!". E brigadas de esperançosos fazem "raids" assassinos entre os milhões de melancólicos que esperam o dia da chegada do asteroide "Silverstein-Sophie".
Até que cessa o som em todas as telas. Em silêncio absoluto, vem girando uma imensa bola de fogo (pois todas as câmeras estavam viradas para o céu). O impacto não é ouvido. Um longo tremor nas imagens, como um sino vibrando sem som - a bola de fogo queima entre poeira e fumaça. Imagens muito escuras, agora com o sol tapado pela poeira que se ergueu e que pode durar mil anos. A nova idade do gelo.
A história humana tinha virado história natural. Dentro da sala, os fungos, lesmas, lacraias evoluem na umidade escura.
Nas telas vazias deslizam imagens sem som do que fora o drama humano; agora, apenas um fundo, um fungo - (a História teria sido um fungo?).
Súbito, uma grande tela se acende, com música. Uma orquestra toca alto e um homem sapateia, elegante, magro. Quem? Novo fremir nos corpos dos bichos incomodados pelo som alto da música. Na tela, Fred Astaire sapateia, sorrindo - a imagem da felicidade humana, em sincronia perfeita com uma linda mulher.
A gravação dispõe de mecanismo de "autorreverse", voltando ao início e recomeçando sempre que ela chega ao fim.
E, como a probabilidade de uma lesma de novo passar pelo botão vermelho e desligar tudo é de uma em milhões, é possível que nunca mais se repita a trajetória da dita lesma que, mil anos depois do fim, mostrara imagens dos últimos dias da história humana.
Portanto, é bem possível que Fred Astaire e Eleanor Powell dancem Begin the Beguine por toda a eternidade.
(*) Hoje, para variar, um conto.

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