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sábado, 19 de setembro de 2015

Flechadas e crises


Roberto DaMatta

Quando eu vivi, de agosto a novembro de 1961, entre os índios gaviões no rio Praia Alta, Pará, nos meus plenos e apaixonados 25 anos, testemunhei um apocalipse. Antes desse grupo tribal ter uma relação estável com a sociedade brasileira local - façanha realizada por frei Gil Gomes, um notável frade dominicano, desde os anos 1950 -, os “caboclos” eram caçados e tinham seus fígados comidos por cachorros. Claro que contra-atacavam. Deles, eu ouvi que flechas eram balas; e arcos, espingardas.


No meu diário de campo do dia 20 de outubro de 1961, registrei:


“Escrevo debaixo de um ótimo sol. Comi ovos de jacaré com farinha. Aprororenum dorme com um enorme terçol na minha rede. A maioria está no mato e Melatti (meu companheiro de pesquisa, hoje dono de uma impecável obra antropológica) tenta colher genealogias”.


Aktote e Supercílio trazem um jacaré de tamanho regular cuja carne, surpreendentemente branca, é apreciada pela fome. Zaroio e sua esposa Pembkuí apanham babaca na trilha para Itupiranga. Krepoire, Puhire e Pahitxote apanham mandioca e inhame na roça, enquanto Doidão faz um cesto.


Às 11h40, os gaviões reiteram que matavam “cristãos” (“kupen”) e, nesse clima cordial, almoçamos um prato de arroz. Às 14h, sou convidado por Doidão para apanhar a mandioca no rio que secou. Com isso, o Praia Alta ficou inutilizado para banho e fonte de água potável. Descubro, entretanto, que os gaviões possuíam uma “aldeia grande” que, numa grande crise, se partiu. Muitos foram flechados, dois ou três mortos.


Após um banho de cacimba, no qual fiquei mais sujo do que limpo, testemunhei a chegada do líder e Capitão Baleado, acompanhado de sua mulher Piariditi e do menino Jutapiti.


De maio a agosto, estávamos numa aldeia com 21 gaviões que mal falavam português. Havia mais antropólogos que índios...


Não é acidente que o meu diário seja marcado por referências a morte, extinção, doença, choro, espírito, enterro e saudade. Havia um desalento, que tentei traduzir no meu primeiro livro, Índios e Castanheiros, escrito com Roque Laraia, publicado em 1967 pela Difusão Europeia do Livro numa coleção dirigida por Fernando Henrique Cardoso e prefaciado pelo nosso professor Roberto Cardoso de Oliveira. Nele, apresentamos um retrato do abjeto destino que coube a centenas de grupos tribais diante da chamada “civilização brasileira”.


Darcy Ribeiro, no seu importante ensaio Culturas e Línguas Indígenas do Brasil (1957), estima que os gaviões tinham uma população entre 1.500 a 2 mil indivíduos. Eu testemunhei e documentei os efeitos desse processo de hecatombe populacional em 1961, investigando a organização social de três dezenas de seres angustiados pelo fim de sua Humanidade.


Foi o seu impoluto líder, o Capitão Baleado (Krokrenum), no entanto, quem me deu as primeiras aulas sobre o que, neste Brasil poluído de crise ética e moral, chamamos de “política”.


Com ele, aprendi que, numa crise, um líder deve ser forte, honesto, coerente. Ele deve falar com altivez e coerência e desdenhar bens materiais. Sua liderança é dada pelo exemplo, pois, não tendo governo, ele não tem partidos, ministros, polícia, puxa-sacos, testas de ferro, laranjas ou exército. O “poder” entre os “selvagens” e “primitivos” gaviões implicava não em ter o controle do uso da força, mas em harmonizar e aplacar eventos (e pessoas) desafiadores dos costumes. O Capitão ia de papa a rei, de mediador esperto a psicanalista e cronista de jornal. Dar mais do que receber era a sua divisa. O Capitão era “pobre” - o justo oposto do que constitui a nossa concepção de “política”, que aristocratiza e enriquece.


A crise da “aldeia grande” foi deflagrada pela disputa entre líderes intransigentes. Diante de um ódio mútuo incontrolado, dividiram-se, formando duas aldeias. Um espaço territorial livre e a ausência de um “judiciário” fizeram com que a disputa adquirisse um cunho pessoal e intransferível. Sem um estado proprietário de uma “terra”, como é o nosso caso, essas soluções “para fora” (formando por cisão uma outra aldeia) eram possíveis. Quando ali estive, em 1961, a aldeia esperava um ataque da outra facção. Só quem não percebia isso eram os idiotas, cujo objetivo era estudar modos de vida - os patetas que queriam ser antropólogos.


Tal cisão permaneceu e, hoje, entendo os gaviões, que estão juntos e territorialmente ancorados. Mas, naquele momento, a política era controlada por um grande Capitão. Não havia roubo nem propina, pois flechas não são moedas, mas instrumentos de morte.


PS: Qualquer semelhança com a boa, costumeira, velha e “civilizada” roubalheira, que forma o piso da chamada “crise brasileira” é mera coincidência.

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