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quinta-feira, 6 de agosto de 2015

A Terra vista de longe





Roberto DaMatta

Buscar uma outra coisa pode ser sinal de um impulso positivo ou negativo. No tempo em que eu tinha apenas dois pares de sapato (um “sapato tanque” para a escola e a rotina) e um outro “social”, conservado com brilho, para a missa de domingo e para as festas, eu era, apesar do regime de alta sobriedade, obrigado a trocar de sapato. E se é relativamente fácil encontrar um sapato 2.0 para o par jogado fora, imagine o que seria migrar para um outro sistema solar para viver numa outra “Terra”. Agora, velho de idade, compreendo bem a luta de papai comprando cinco pares de sapato para seus cinco meninos... E não posso me esquecer do pesar ligado ao ato de “jogar fora” os sapatos velhos, cujo conforto e suavidade eram trocados pela rigidez implacável dos novos, com os quais meus pés não tinham a menor intimidade.

Sou do tempo em que tínhamos um relógio, uma caneta e um casamento. Coisas do século passado com seus aviões bimotores, seus bondes com estribos, suas praias de águas transparentes, suas moças de saias rodadas e um planeta gigantesco no qual havia muito o que descobrir e mapear.

Os foguetes espaciais inauguraram um novo modo de ver a nós mesmos na nossa imensa insignificância e assustadora responsabilidade. Começamos a perceber que estamos vivos com e para a Terra e não contra ela. Pois a Terra, ela própria, é tão ou mais viva do que nós. Temos uma noção cada vez mais nítida (e trágica) de que somos os únicos seres conscientes de um universo que, sem “sujeito”, não seria “real”.

Chegamos ao infinitamente pequeno e ao denso mistério do espaço. Fomos obrigados a valorizar o papel básico dos micro-organismos, sem os quais não existiríamos, ao mesmo tempo que nos damos conta das imensas dificuldades de sair do nosso para “colonizar” outros mundos.

Ao mesmo tempo que as fotografias revelam um Plutão morto, arrematando o mapa do nosso sistema solar, no concerto formidável dos corpos celestes somos um grão de poeira e, quando pensamos em viajar pelo espaço fora da órbita terrestre, as previsões revertem as sagas juvenis dos Flash Gordons. Deixar a Terra implica enormes dificuldades.

Assim como é complicado trocar de corpo ou de continente, é igualmente complicado mudar de planeta. Dizem que há mundos semelhantes ao nosso, mas situados a uma distância inimaginável: milhares de anos-luz de distância! Tais mundos somente seriam alcançáveis pela imaginação. Outro dia, li que uma viagem a Marte demanda decisões complexas e apresenta problemas fisiológicos talvez intransponíveis para nossa biologia atrelada à Terra. Sem a gravidade terrena e trivial que nos torna seres irremediável pesados, nossa fisiologia seria subvertida, senão interrompida.

Todas as vezes que vejo a Terra de longe, duas coisas me impressionam. Primeiro, a diferença das imagens que jamais são idênticas entre si. Nosso planeta, como nós, muda de cara a cada fotografia. Vemos sempre uma mescla de azul e branco, trocando de lugar. Depois, porque o olhar distanciado não mostra mapas. De longe, a Terra surge como uma esfera sem divisões. Suas descontinuidades são geológicas e geográficas. Ela surge sem sua intrigante (e problemática) diversidade linguística, política e cultural.

Ao lado da magnífica imagem de Plutão, noticiou-se a existência de um planeta gêmeo. Uma Terra 2.0 a ser um dia colonizada. Um lado meu afirma que tal busca expressa uma fantasia. Ela teria o papel de aliviar a destruição sistemática do nosso planeta por seus filhos. Tal fantasia evita enxergar o limite. A linha que, implacavelmente, separa o explorar com parcimônia do esgotar assassino.

Se há outros planetas como o nosso, então podemos fazer como os sapatos - jogar fora a nossa Terra, trocando-a por outro mundo. Tal como fazemos com tudo o que usamos. O crime de morte para com o planeta passaria como parte do um inevitável “progresso”. Uma Terra 2 aliviaria a nossa responsabilidade moral para com este único planeta vivo de todo o nosso sistema solar e, quem sabe, de toda a galáxia. Se somos os únicos seres conscientes deste imenso universo, somos deuses! Olha só o tamanho do barulho e do embrulho no qual estamos metidos.

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